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Poesia Em Gotas
Author: Marcella ☉☽ @marcellasaraceni_
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© Marcella ☉☽ @marcellasaraceni_
Description
Marcella Saraceni é poeta, fotógrafa, redatora e entusiasta dos assuntos ligados a sexualidade, política e arte. Nasceu em uma família de pais homossexuais e desde nova percebeu que não cabia nas caixas sociais pré-moldadas.
Para subverter a ordem e aprender a conviver com as perdas em sua vida, escreveu, encontrando na poesia uma fonte de força e coragem para expressar seu sentir.
Na experimentação do corpo e das palavras, segue buscando novos caminhos e relações mais amorosas consigo e com o mundo.
____
link para compra de seu primeiro livro:
https://editoraurutau.com/titulo/poesias-famintas
Para subverter a ordem e aprender a conviver com as perdas em sua vida, escreveu, encontrando na poesia uma fonte de força e coragem para expressar seu sentir.
Na experimentação do corpo e das palavras, segue buscando novos caminhos e relações mais amorosas consigo e com o mundo.
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link para compra de seu primeiro livro:
https://editoraurutau.com/titulo/poesias-famintas
52 Episodes
Reverse
Contigo, companheiro que chegaste,
desconhecido irmão de minha vida,
reparto esta esmeralda que retive
em meu peito no instante fugitivo
mas infinito em que se acaba a infância,
porque a esmeralda não se acaba nunca.
Reparto, companheiro, porque chegas
a este caminho longo e luminoso
mas que também se faz áspero e duro,
onde as nossas origens se abraçaram
dissolvendo-se em paz as diferenças,
engendradas na vida pela força
feroz com que desune o mundo os homens
que feitos foram para cantar juntos
porque só juntos saberão chegar
para a festa de amor que se prepara.
(...)
O tempo é de cuidados, companheiro.
É tempo sobretudo de vigília.
O inimigo está solto e se disfarça,
mas como usa botinas fica fácil
distinguir-lhe o tacão grosso e lustroso
que pisa as forças claras da verdade
e esmaga os verdes que dão vida ao chão.
O tempo é de mentira. Não convém
deixar livre o menino da esmeralda.
Melhor é protegê-lo da violência
que amarra a liberdade em pleno vôo.
A sombra já desceu, e muitas fauces
famintas se escancaram farejando.
Cuidado, companheiro, esconde a rosa,
espanta a mariposa colorida,
é perigosa esta canção de amor.
Cada um no seu lugar, na sua vez,
não descuidar na espreita do inimigo,
que não dorme jamais e é cheio de olhos.
E derramar a luz, no instante certo,
sobre a garra soturna do seu rosto.
É uma espera que dói, mas o que vale
é ter o coração por cidadela,
acender uma tocha em cada metro
de terra conquistado e trabalhar
melhor, para que o chão floresça mais
e o trigo erga bem alto o seu pendão
para a festa de amor, larga e geral,
onde a fome afinal não vai dançar,
porque não comerão somente eleitos,
porque são todos os que comerão.
É por isso que estamos todos juntos:
a nossa força tem o sortilégio
da seiva torrencial da primavera,
e o nosso amor palpita como os ímpetos
das águas amazônicas profundas.
É cantar, companheiro, e repartir
o que é preciso ser do amor geral.
Ninguém será sozinho nunca mais,
nem na solidão, nem no poder.
Sempre contigo irei, e é quando canto
que te defendo, e deito em tua lâmpada
um azeite que dura a treva inteira
nesses tempos de cinza em que a vigília,
espada em flama erguida como a rosa,
só poderá cessar quando outra vez,
envergonhada, regressar a aurora,
que vai lavar de luz o chão amado,
e seremos de novo e simplesmente
meninos repartindo as esmeraldas.
quando estou triste
ando na rua achando que todos sabem
uma senhora me encarou por mais de dois minutos
e eu tive certeza: ela está vendo minha dor
na farmácia perguntaram se eu não queria levar um lenço umidecido que estava na promoção
assim, do nada
vou caminhando pelas ruas carregando minha tristeza como um cabelo
que está preso, pesando minha cabeça
não o amarro ou faço coques
levo ele do jeito que está quando acordo
e até sou capaz de sorrir
uma, duas, três vezes...
eu não esqueço da alegria
e posso vê-la
está ao alcance dos meus olhos
mas não dos meus pés
se vejo um banco na praça
tenho vontade de sentar e questionar minha vida toda
se me pedem desculpas
respondo: “desculpa eu”
se quase piso no rabo de um gato
sou capaz de chorar
infinitas banalidades me fazem chorar quando estou triste
e para fazer compras no mercado, eu talvez use um óculos escuro
só uso óculos escuro quando estou triste
no sol não. no sol geralmente estou feliz
copacabana. ruas lotadas de gente.
passo chorando entre elas
com um fone de ouvido escutando algo
que não combina em nada com aquele cenário
mas esse movimento todo me interessa
andar chorando entre os pedestres que correm
que não me enxergam
é como um pequeno rio brotando
no chão do asfalto quente
é uma bandeira que diz
(com som de sinere ao fundo)
“eu me permito sentir”
alguém está vindo em minha direção
é um dos rapazes de roupas azuis
do exército da salvação
quase acho que vieram para me salvar
“que pena”
respondo à ele
queria ajudar.
mas hoje não,
hoje estou triste.
eu durmo comigo/ de bruços deitada eu durmo comigo/ virada pra direita eu durmo comigo/ eu durmo comigo abraçada comigo/ não há noite tão longa em que não durma comigo/ como um trovador medieval agarrado ao alaúde eu durmo comigo/ eu durmo comigo debaixo da noite estrelada/ eu durmo comigo enquanto os outros fazem aniversário/ eu durmo comigo ás vezes de óculos/ e mesmo no escuro sei que estou dormindo comigo/ e quem quiser dormir comigo vai ter que dormir do lado
compro cuecas nas americanas apenas
quando estão na promoção não pago
mais de doze reais por unidade
uso aquelas que parecem shorts qual é o nome
comecei a usar pra que não vissem
minha bunda por baixo das saias e vestidos
aos poucos substituí as calcinhas
tão desconfortáveis
que sempre entram no meio da bunda
as mais baratas então são de poliéster puro
já minhas cuecas são de algodão
macias
lavei as cuecas e ao colocar no varal
acabei deixando uma cair na rua
desci pra buscar vi um senhor estava botando ela
no bolso
ele não entendeu quando pedi de volta e disse que era minha
por estar de bom humor contei:
só uso calcinhas em começos de namoro e olhe lá
ele não me devolveu atravessou a rua balançando minha cueca
agora uso um varal dentro de casa
estou farta de mal-en
(…) Dizem que o mundo é feito de átomos. Está bem. “O mundo não é feito de átomos, o mundo é feito de histórias”, disse uma amiga. Eu acredito que sim, o mundo deve ser feito de histórias, porque são as histórias que a gente conta e escuta, recria e multiplica. São as histórias que permitem transformar o passado em presente, e também permitem transformar o distante em próximo. O que está distante em algo próximo, possível e visível.
O mundo é isso, revelou: um monte de gente, um mar de foguinhos. Não existem dois fogos iguais. Cada pessoa brilha com luz própria, entre todas as outras. Existem fogos grandes e fogos pequenos, fogos de todas as cores. Existem pessoas de fogo sereno, que nem ficam sabendo do vento, e há pessoas de fogo louco, que enche e arde faíscas. Alguns fogos, fogos bobos, não iluminam nem queimam. Mas outros… outros ardem a vida com tanta vontade, que não pode olhá-los sem pestanejar. Quem se aproxima, se incendeia.
tinha uma bandeira na entrada da sua rua
ela sinalizava que ali
era um território perigoso
nunca tive medo de encontrar um animal selvagem
do barco afundar
de ser engolida por uma grande onda
saí correndo na noite escura
pulei o muro da sua casa
cheguei no jantar de aniversário do seu avô
fundei um partido
sem líderes
mas com grandes ambições
eu queria ir longe, baby
muito longe
e você queria cuidar da orquídea que crescia
dentro de mim gritava
saia da floresta vamos correr o mundo
e o felino, selvagem, quieto
só me olhava de longe
1.
uma mulher molhada sobre uma mulher molhada é audível, sólido
2.
uma mulher sobre outra mulher não é preliminar é pré
histórico
3.
uma mulher
para amar uma mulher
é preciso comer com as mãos
4.
uma mulher
para amar uma mulher
é preciso cortar as unhas
5.
colar a trajetória no epicentro:
uma mulher que ama uma mulher aprende a lamber as coisas por den- tro
Ser rebelde leva uma vida inteira,
apagando os privilégios da pele,
inscrevendo-se na solidão da discórdia,
deixando para trás os usurpadores...
Não há recompensa para uma rebelde
além de poder regar as flores na hora certa,
sair para alimentar os pássaros numa manhã em que o capital devora,
sorrir com os dentes desgastados diante da desgraça do café da manhã,
ficar sem teto na casa em que ninguém sonha.
As rebeldes sabem do que são feitos os prêmios,
rejeitam as migalhas lançadas pela mão do opressor.
Uma rebelde tem a vida como única recompensa,
porque ninguém se apropria dela,
nela ninguém a usurpa,
porque é o único terreno próprio de cada canto onde dorme.
Sua rebelião sempre consegue encobrir o desânimo do progresso
e se uma rebelde sente alegria na solidão, ela conquistou o mundo.
Produção musical, Arranjo e Saxofones: Dudu Rezende
Produção musical e Mixagem: Beno Ibeas
Masterização: Guilherme Lopes ___________________________________
após 30 anos caminhando
ajoelhei aos pés da noite
e disse
cansei
ali entreguei
u m a por u m a
todas as armas
que empunhei
contra mim
de repente meu corpo
era tomado por uma
explosão de energia
que nunca havia experimentado
então não era um movimento
externo
era interno mesmo
pensei
naquele lugar
fiz uma nascente
onde correu rio por dias
e dias
ininterruptamente
a noite observava tudo
olhando sem espanto
como se ja esperasse
minha chegada
como se dissesse
você demorou
o importante é que vim
repetia internamente
tentando manter a faísca acesa
eu não podia esquecer
porque fui até lá
eu precisava sustentar
todo o caos
aos pés da noite
uma montanha se levantava
eram meus pedaços
quando vão acabar?
me perguntava
meu grande desejo
era que aquela explosão
viesse com tudo
que eu fosse vulcão por fora
não aguentava mais erupçar por dentro
eu olhava de frente
pra morte
e dava um beijo nela
terno
mas se despedida
precisava conhecer a vida
já conhecia a morte
de muito perto
já dormi com ela
infinitas vezes
precisava abrir espaço na minha cama
pra ser visitada
pelo sonho
daqueles que você acredita
que podem nascer
enfim depois de semanas
onde só se viu a escuridão
o rio secou
o sol apareceu sem vergonha
nada mais poderia carregar
vergonha
encarei a luz
e não me protegi
deixei meus olhos
arderem
em brasa firme
eu ainda não explodia
mas sentia cada parte de mim
aquecer
borbulhar
havia
vida
ali
e eu sentia que ela era pra mim
e
Moço, cuidado com ela!
Há que se ter cautela com esta gente que menstrua...
Imagine uma cachoeira às avessas:
Cada ato que faz, o corpo confessa.
Cuidado, moço
Às vezes parece erva, parece hera
Cuidado com essa gente que gera
Essa gente que se metamorfoseia
Metade legível, metade sereia.
Barriga cresce, explode humanidades
E ainda volta pro lugar que é o mesmo lugar
Mas é outro lugar, aí é que está:
Cada palavra dita, antes de dizer, homem, reflita..
Sua boca maldita não sabe que cada palavra é ingrediente
Que vai cair no mesmo planeta panela.
Cuidado com cada letra que manda pra ela!
Tá acostumada a viver por dentro,
Transforma fato em elemento
A tudo refoga, ferve, frita
Ainda sangra tudo no próximo mês.
Cuidado moço, quando cê pensa que escapou
É que chegou a sua vez!
Porque sou muito sua amiga
É que tô falando na "vera"
Conheço cada uma, além de ser uma delas.
Você que saiu da fresta dela
Delicada força quando voltar a ela.
Não vá sem ser convidado
Ou sem os devidos cortejos..
Às vezes pela ponte de um beijo
Já se alcança a "cidade secreta"
A atlântida perdida.
Outras vezes várias metidas e mais se afasta dela.
Cuidado, moço, por você ter uma cobra entre as pernas
Cai na condição de ser displicente
Diante da própria serpente
Ela é uma cobra de avental
Não despreze a meditação doméstica
É da poeira do cotidiano
Que a mulher extrai filosofando
Cozinhando, costurando e você chega com mão no bolso
Julgando a arte do almoço: eca!...
Você que não sabe onde está sua cueca?
Ah, meu cão desejado
Tão preocupado em rosnar, ladrar e latir
Então esquece de morder devagar
Esquece de saber curtir, dividir.
E aí quando quer agredir
Chama de vaca e galinha.
São duas dignas vizinhas do mundo daqui!
O que você tem pra falar de vaca?
O que você tem eu vou dizer e não se queixe:
Vaca é sua mãe. de leite.
Vaca e galinha...
Ora, não ofende. enaltece, elogia:
Comparando rainha com rainha
Óvulo, ovo e leite
Pensando que está agredindo
Que tá falando palavrão imundo.
Tá, não, homem.
Tá citando o princípio do mundo!
O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: “Estou fazendo. Estou pensando.”
Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a ideia.
O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não veem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os veem como simples pessoas humanas. O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver. O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski.
Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro. Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranquilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu.
Aviso: não confundir bobos com burros. Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: “Até tu, Brutus?”
Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!
Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.
O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos. Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos. Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham a vida. Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.
Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.
Chega! Cansei
Cá chegamos
Caramba, como conseguimos?
Cada coisa...
Corações costurados,
Conexões cortadas,
Consciência? Coitada
Ceifada como capim!
Começamos como coelhos
Café cama chamego
Café cama chamego
Café cama chamego
Caminhamos...
Crescemos...
Criamos crianças cachorros calos
Compramos carro casa cobertores
Casamos
Como cúmplices compartilhamos
Canções calor choro cachaça
Cambaleando
Caímos
Como continuar?
Cantando Chico César
Como costumávamos
Escute só, isto é muito sério.
Anda, escuta que isso é sério!
O mundo está tremendamente esquisito. Há dez anos atrás o Leon me disse que existe uma rachadura em tudo e que é assim que a luz entra, não sei se entendi. Você percebe alguma coisa da mistura entre falhas e iluminação?
Aliás, me diga, você percebe alguma coisa de carpintaria? Você sabe por que meteram um boi naquele estábulo ao invés de um pequeno rinoceronte? Deve ter tido alguma coisa a ver com a geografia. Ou com os felizmente insolussionáveis mistérios que só podem vir do misticismo asiático. Um boi é um bicho tão… inexplicável. Ainda bem.
O amor é um animal tão mutante, com tantas divisões possíveis.
Lembra daqueles termômetros que usávamos na boca quando éramos pequenininhos? Lembra da queda deles no chão?
Então, acho que o amor quando aparece é em tudo semelhante à forma física do mercúrio no mundo. Quando o vidro do termômetro se quebra, o elemento químico se espalha e então ele fica se dividindo pelos salões de todas as festas. Mercúrio se multiplicando. Acho que deve ser isso uma das cinco mil explicações possíveis para o amor.
Ah é! Eu gosto de você. A luz entrou torta por nós a dentro, mas, olha, eu gosto de você! A luz do verão passado quebrou o vidro da melancolia e agora ela fica se expandindo pelas ruas todas. Desde aquele outro lado do Sol até esse tremendo agora.
Hoje ainda faz bastante frio. As cinzas ainda não aterraram sobre as cabeças disfarçadas, tem gente batucando suor e cerveja pelas ruas de nossa cidade sul. Na cidade norte, há ondas de sete metros tentando acertar no terceiro olho dos rapazinhos disfarçados de cowboys.
[suspiro]
O mestre ainda não veio decretar o começo da abstenção e, olha, a luz ainda está conosco. Sim, o mundo está absurdamente esquisito. Já ninguém confia nas imposições dos prefeitos, a esta hora na terra é um tanto carnaval, um tanto conspiração, um tanto medo. Metade fé, metade folia, metade desespero. E, provavelmente, a esta hora, uma metade do mundo está vencendo e a outra metade dormindo, há ainda outra metade limpando as armas, outra limpando o pó das flores. Mas, por causa do que me ensinou o místico, eu acredito que exista, agora, alguém profundamente acordado. Alguém que esteja vivendo entre o intervalo tênue entre o sonho e a agilidade. Suponho que ele saiba perfeitamente que este começo de século será nosso batismo do voô para nossa persistência no amor.João molhou a testa de Manuel. Os gritos das ruas molham as testas de nossos corações.
De que lado você está, eu não me importo! De que garfo você come, de que copo você bebe, que posto certo você escolhe, qual é seu orixá, seu partido, sua altura, de qual de suas cicatrizes cuida, que pássaro você prefere, quem é seu pai, qual é seu samba, Pinot noir ou Chardonay, que protetor você usa, qual é sua pele, seu perfume, qual político, quantos amores você sonha, em que Fernando, em que Ofélia, em que cinema, em que bandeira, em que cabelo você mora, qual dos túneis de Copacabana. Rezo para seus santos quando atravessar.
É… é impossível viver no país de Deus. Isso eu te dou de barato. Mas, atravessar o gramado de Deus em bicicleta, isso não é impossível, não.
Escuta, isso é sério!
Andamos crescendo juntos, distraidamente. As árvores crescem conosco. Nossa pele se estende, nosso entendimento, teso, também. O século cresce conosco. O amor pelas ventas da cara do mundo, também.
Quanto a um pra um entre nós dois, isso logo se vê. Não sei nada sobre a paixão, suspeito que você também não. Mas, começo a entender que o compasso da fé está mudando a passos largos. Dois pra lá e dois pra cá.
Portanto, escute.
Isto é muito serio!
Isto é uma proposta aos trinta anos.
Agora que o mercúrio assumiu sua posição certa, vem comigo achar o meu trono mágico entre a folhagem. E, no caminho até lá, vem dançar comigo, vem!
Você não sabe? O amor de mãe
ignora o amor-próprio
como o fogo ignora
os gritos sonoros
daquilo que queima. Meu filho,
mesmo amanhã
você vai ter o hoje. Você não sabe?
Alguns homens tocam seios
como tocassem
o topo de crânios. Homens
que ultrapassam montanhas
levando seus sonhos, seus mortos
nas costas.
Mas só uma mãe pode andar
com o peso
de um segundo coração que bate.
Garoto tolo.
Talvez você se perca em todo livro
mas jamais vai se esquecer de si
como deus esquece
as próprias mãos.
Quando alguém te perguntar
de onde você é,
responda sempre que o teu nome
virou carne na boca banguela
de uma mulher da guerra.
Que você não nasceu
que você rastejou, de cabeça —
rumo à fome dos cães. Meu filho, responda
que o corpo é uma lâmina que se afia
cortando.
O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
- porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira
Um dia,
os intelectuais
apolíticos
do meu país
serão interrogados
pelo homem
simples
do nosso povo
Serão perguntados
sobre o que fizeram
quando
a pátria se apagava
lentamente,
como uma fogueira frágil,
pequena e só.
Não serão interrogados
sobre os seus trajes,
nem acerca das suas longas
siestas
após o almoço,
tão pouco sobre os seus estéreis
combates com o nada,
nem sobre sua ontológica
maneira
de chegar às moedas.
Ninguém os interrogará
acerca da mitologia grega,
nem sobre o asco
que sentiram de si,
quando alguém, no seu fundo,
dispunha-se a morrer covardemente.
Ninguém lhes perguntará
sobre suas justificações
absurdas,
crescidas à sombra
de uma mentira rotunda.
Nesse dia virão
os homens simples.
Os que nunca couberam
nos livros e versos
dos intelectuais apolíticos,
mas que vinham todos os dias
trazer-lhes o leite e o pão,
os ovos e as tortilhas,
os que costuravam a roupa,
os que manejavam os carros,
cuidavam dos seus cães e jardins,
e para eles trabalhavam,
e perguntarão,
"Que fizestes quando os pobres
sofriam e neles se queimava,
gravemente, a ternura e a vida?"
Intelectuais apolíticos
do meu doce país,
nada podereis responder.
Um abutre de silêncio vos devorará
as entranhas.
Vos roerá a alma
vossa própria miséria.
E calareis,
envergonhados de vós próprios.
Mergulhar a palavra suja em água sanitária.
depois de dois dias de molho, quarar ao sol do meio dia.
Algumas palavras quando alvejadas ao sol
adquirem consistência de certeza. Por exemplo a palavra vida.
Existem outras, e a palavra amor é uma delas,
que são muito encardidas pelo uso, o que recomenda esfregar e bater insistentemente na pedra, depois enxaguar em água corrente.
São poucas as que resistem a esses cuidados, mas existem aquelas.
Dizem que limão e sal tira sujeira difícil, mas nada.
Toda tentativa de lavar a piedade foi sempre em vão.
Agora nunca vi palavra tão suja como perda.
Perda e morte na medida em que são alvejadas
soltam um líquido corrosivo, que atende pelo nome de amargura,que é capaz de esvaziar o vigor da língua.
O aconselhado nesse caso é mantê-las sempre de molho
em um amaciante de boa qualidade. Agora, se o que você quer é somente aliviar as palavras do uso diário, pode usar simplesmente sabão em pó e máquina de lavar.
O perigo neste caso é misturar palavras que mancham
no contato umas com as outras.
Culpa, por exemplo, a culpa mancha tudo que encontra e deve ser sempre alvejada sozinha.
Outra mistura pouco aconselhada é amizade e desejo, já que desejo, sendo uma palavra intensa, quase agressiva, pode, o que não é inevitável, esgarçar a força delicada da palavra amizade.
Já a palavra força cai bem em qualquer mistura.
Outro cuidado importante é não lavar demais as palavras
sob o risco de perderem o sentido.
A sujeirinha cotidiana, quando não é excessiva,
produz uma oleosidade que dá vigor aos sons.
Muito importante na arte de lavar palavras
é saber reconhecer uma palavra limpa.
Conviva com a palavra durante alguns dias.
Deixe que se misture em seus gestos, que passeie
pela expressão dos seus sentidos. À noite, permita que se deite, não a seu lado mas sobre seu corpo.
Enquanto você dorme, a palavra, plantada em sua carne,
prolifera em toda sua possibilidade.
Se puder suportar essa convivência até não mais
perceber a presença dela, então você tem uma palavra limpa.
Uma palavra LIMPA é uma palavra possível.
Ontem meu peito chorava.
Hoje, não.
Também cansa a desventura.
Também o sol gasta o chão.
Estava ontem sozinha,
tendo a meu lado, sombria,
minha própria companhia.
Hoje, não.
Morreu de tanto morrer
a pena que tanto vivia.
Morreu de tanto esperar.
Eu não.
Relógios do tempo andaram
marcando o tempo em meu rosto.
A vida perdeu seu tempo.
Eu não.
Também cansa a desventura.
Também o sol gasta o chão.
Uma gota de leite
me escorre entre os seios.
Uma mancha de sangue
me enfeita entre as pernas
Meia palavra mordida
me foge da boca.
Vagos desejos insinuam esperanças.
Eu-mulher em rios vermelhos
inauguro a vida.
Em baixa voz
violento os tímpanos do mundo.
Antevejo.
Antecipo.
Antes-vivo
Antes – agora – o que há de vir.
Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo
do mundo.
Como alguém que chega com uma carta importante ao guichê depois das horas regulamentares: o guichê já está fechado.
Como alguém que quer advertir a cidade de um inundação: mas fala uma outra língua. Não o compreendem.
Como um mendigo que pela quinta vez bate a uma porta onde já recebeu esmola quatro vezes: ele tem fome pela quinta vez.
Como alguém cujo sangue lhe corre duma ferida e espera pelo médico: o sangue continua a correr.
Assim vimos nós e relatamos que em nós se cometem crimes.
Quando se relatou pela primeira vez que os nossos amigos era abatidos pouco a pouco, houve um grito de horror. Então foram abatidos cem. Mas quando foram abatidos mil e a matança não tinha fim, espalhou-se o silêncio.
Quando o crime vem como a chuva cai, então já ninguém grita: alto!
Quando os delitos se amontoam, tornam-se invisíveis.
Quando as dores se tornam insuportáveis, já se não ouvem os gritos.
Também os gritos caem como a chuva de Verão.
United States
INEFÁVEL.
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