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Caminhante

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Um beijinho em cada face, querido avô.
Levo uma mão à testa para medir a temperatura. A garganta arranha, manifestando uma indelével crispação entre a suavidade habitual e as vergastadas que a saliva parece criar. Não estou doente: estou stressada.
A partir das folhas de Outono, surgem-me imagens de um passado não muito distante.
Cá vos deixo uma reflexão de Abril, a partir do filme Lisbon Story (Wim Wenders) e da obra A Vida Nova (Orhan Pamuk).
"A vontade de escrever vem-me como um impulso circular. Nos últimos dias, tudo o que consumo parece falar sobre si próprio, numa espécie de recentrar progressivo da vida, que volta aos seus eixos fundamentais. Por isso, também este lampejo da alma se desloca de mim para mim, numa hermenêutica do si que se pretende pouco exaustiva, ainda que incisiva.
Acompanho com afecto os filmes que a Medeia disponibiliza. Nos dias assinalados, fez-se ritual de início da tarde assistir ao filme com a minha mãe, que me acompanha no conforto do sofá que é, agora, mais receptáculo de partilha do que espaço de descanso pós-laboral. Com “Lisbon Story” iniciou-se essa constatação de que é uma obra sobre a obra, um filme sobre filmes, estancando-se a narrativa com uma compressa que só o cinema parecia dispor: ensanguentado, dava-me a impressão de que a encomenda do filme se desculpava pelo facto de funcionar como reflexão sobre os meandros de construção de um filme, da labuta que é a sua perseguição e da hercúlea tarefa que é a montagem de significado na era da perda do sentido da imagem. Tudo bem, porque depois disso jantámos e jogámos cartas.
A coisa adensa-se com Pamuk. Caramba, um livro sobre o impacto fulminante de um livro. Que partida estará Deus a dirigir-me neste instante para que a circularidade ressoe tanto no que como entre refeições? Peguei em “A Vida Nova” por mero acaso, já que/uma vez que/porque (façam uso dos sinónimos para enriquecer os vossos textos) lera em Agosto “A Strangeness in My Mind” sem retirar da obra um particular apreço pela noctívaga deambulação de Mevlut, a par do fatídico confronto entre o vendedor de boza e os cães vadios que preenchem Istambul. Ão ão! É provável que a culpa não morra solteira e a tradução inglesa não faça justiça aos encantamentos de uma Turquia melindrosamente percorrida por uma geração quase extinta de comerciantes ambulantes. Ambulantes comerciantes ou a minha insistência nas traduções. Pois o que aqui é digno de ressalva é a inconstância que a procura objectiva pela linearidade ocupa na vida. Entre cás e lás, a consumação de uma circularidade geracional, traçada debaixo da campânula dos objectivos de vida, surge-me sempre no confronto com a mise en abyme da cultura que masco e deito fora. Fico com um leve travo a irreverência na língua para, depois, engolir uma pastilha de mentol: afinal, pois, sim, é verdade, um filme sobre um filme, um livro sobre um livro; afinal, pois, sim, é verdade, o que existe de circular é o poder da contingência, da circunstância que me diz que nada existe de linear no percurso. Mais: não há percurso. Parece-vos que andamos a correr numa roda ou que as paredes são mais paredes do que é habitual? O loop do vício é o loop de não se abrir mão da linearidade, esse constructo que nos crê homens-senhores-do-seu-nariz. Não vos tinha já dito que na ponta do meu nariz está um ponto negro que é a cidade?"
"On Nonscalability: The Living World is Not Amenable do Precision Scales", de Anna Lowenhaupt Tsing, é o mote para repensar a nossa forma de enquadramento do capitalismo. Fora de uma dicotomia estanque, é na embriaguez da relação que está o pistão para a compreensão do contemporâneo: entre a seiva das raízes das árvores e os cogumelos, sobrevive uma colaboração. Um por todos e todos por matsutake.
"Portugal, Hoje" e notas acerca do que pode ser o efeito nefasto da virtualização da experiência: o afastamento de todos de tudo. O Todo chega-nos num bloco centralizado, iminentemente distante e distanciado dos fragmentos a que reporta. "É a vida" é o quê? É a gralha final de um "quando falemos" que queria ser "quando falarmos".
A abertura ao mundo pode ser medida pelo tamanho da nossa cavidade bucal? Talvez. Comamos é de boca fechada.
Estão abertos? Eu não sei. Ainda assim, há pedacinhos de eternidade que acontecem na possibilidade de nos abrirmos ao que é espontâneo. Abdiquemos das amarras do controlo, que é, na verdade, um fantasma, uma aparência de real. Nos quase 24 anos, é esta a convicção incerta (estou certa do paradoxo) que levarei até aos 25. Depois, logo se vê.
Que espaço ocupa a Universidade na transformação do socius? No interstício entre o que se faz e o que se pensa, mantêm-se as dúvidas quanto ao propósito da academia.
Do bairro para o mundo e do mundo para o bairro, são os cruzamentos e as minudências do quotidiano que me (nos?) preenchem. As melhores maçãs reineta são as do Senhor Lakhwinder Singh.
Ouvimos alguém a falar-nos do incompreensível e é esse o pistão para aspirarmos a outra coisa. Refiro-me ao que ouvi Ana Gomes dizer a propósito do falecido marido, António Franco, no podcast Fala Com Ela (Inês Maria Menezes).
"Fato Azul e Camisola Amarela
Fato. Qualquer afecto suscitado ou sustentado pelo vestuário que o sujeito usou no momento do encontro de amor, ou que usa na intenção de seduzir o objecto amado. "
Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso.
Folhas que carregam histórias, o verbo "pontapear" mal conjugado e um apelo à transformação. Partimos de um trecho da obra "O Movimento das Coisas, Talvez..." de José-Manuel Xavier para chegar ao cumprimento do Outono.
Música de Fundo: Walk, de Ludovico Einaudi.
Perdida no interior de Viseu, entre aldeias que dão amoras e quietude, uma miúda grava um trecho antes de ir comprar o jornal.