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Brasil-África
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Sim, ela é branca e se apresenta como antirrascista. Mesmo vindo de uma família humilde de São Paulo, a doutora em Ciências da Comunicação pela USP Paola Prandini sabe que goza de privilégios pela cor da pele. Mas isso não a deixa confortável. Transformou seu ativismo contra o racismo e as heranças preconceituosas do período colonial em tema de pesquisa, o que resultou em um livro recém-lançado: "Conexão Atlândica", título que faz referência ao encontro dos oceanos Atlântico e Índico. Vinicius Assis, correspondente da RFIA obra de Paola é resultado de quatro anos vivendo entre Brasil, África do Sul e Moçambique, focada nos temas da branquitude, de colonialidades e educomunicação (método de ensino que torna os meios de comunicação elementos de aprendizagem) nesses três países.“O Brasil ultimamente tem sido um pouco mais crítico e aguerrido em relação à questão antirracista”, destacou, mas a pesquisadora também apresentou semelhanças nos três países em se tratando dos desafios em torno do assunto.No caso sul-africano, os resquícios do Apartheid (regime de segregação racial que vigorou no país por 46 anos) ainda são notáveis no dia a dia. Por exemplo, ao chegar em determinados restaurantes é possível perceber que os clientes são predominantemente de uma só raça, ou ficam separados por grupos, mas sem que isso hoje seja algo imposto delo Estado.“Tem a mesa dos indianos, a dos ‘blacks’ (pretos), a dos ‘whites’ (brancos). Espaços em que ainda essa divisão acontece”, destacou Paola, que viveu em Joanesburgo, onde estudantes relatam que professores ainda os fazem falar inglês com sotaque mais britânico possível, dependendo da escola onde estudam. A alegação é que, assim, terão mais respeito, melhores empregos e condições de vida.Em Moçambique, as disputas raciais não estão necessariamente presentes no dia a dia. “É uma população quase que exclusivamente negra, mas há uma espécie de respeito/endeusamento da pessoa branca que é um pouco preocupante. Até hoje, há pessoas que ainda veem as pessoas brancas nesse lugar ‘nós somos diferentes, você merece mais respeito, você merece ser bem recebido’. E eu vejo também pessoas brancas lá se valendo disso”, apontou.Para analisar os impactos da branquitude e colonialidade nos currículos de escolas públicas de Maputo, Joanesburgo e São Paulo, a brasileira entrevistou 13 professores de várias raças dessas três cidades, que trabalham da educação infantil ao ensino médio. Na obra, ela aponta 31 categorias de análise crítica à branquitude e as colonialidades, como, por exemplo, a “hipervisibilidade branca”, o que acaba sendo visto nos currículos escolares. “Se você olhar para os exemplos dados, as ilustrações às vezes dos livros”, citou.Ela destaca que já houve avanços em se tratando de livros, que no passado só traziam bonequinhos brancos em suas páginas. Mas mesmo que essa discussão dos livros já tenha acontecido de maneira bem forte nos três países, professores relataram que o jeito de ensinar os faz reproduzir aulas que tiveram quando estudavam. Com isso, acabam se posicionando de um jeito muito eurocêntrico. Professores nos três países entrevistados por Paola afirmaram que a maior parte do que ensinam ainda segue esta linha.Dos três países pesquisados, o Brasil é o único que tem uma legislação que coloca a cultura e a história africana e afrobrasileira como matéria obrigatória nos currículos escolares. “Ela (a lei 10.639, de 2003) é parte da solução, mas ela sozinha não resolve”, frisou. Em contrapartida, no contexto sul-africano línguas bantu também são ensinadas em muitas escolas. Mas essa ideia não é muito abraçada em Moçambique, apesar do incentivo do governo.“No caso moçambicano, há um caderno que foi feito pelo Ministério da Educação de orientação para educação de línguas bantu como uma demanda mesmo, do próprio Ministério, para as escolas e para a educação nacional. Mas, na hora da prática, a gente ainda vê muitos entraves”,disse.Mentalidade ainda colonialA pesquisadora se refere a entraves da mentalidade ainda colonial. No livro, ela traz um exemplo que ilustra bem isso: o de um professor, formado em educação em línguas bantu, que apresentou essas orientações do governo moçambicano ao diretor e a sugestão não foi bem recebida. “O diretor disse: nossa, agora que a escola estava ficando bonita você vem trazer essas ideias?”, citou Paola.A brasileira relatou ainda que na referida escola, por exemplo, falar Changana é proibido, embora o idioma local seja muito presente no dia a dia de muitos estudantes, principalmente da periferia de Maputo. “O contexto da cidade de cimento é muito de língua portuguesa, mas quando a gente expande deixa de ser”, explicou a pesquisadora.Ela não quis publicar algo que só apontava os problemas, nem que a colocasse numa posição de ser a branca tentando resolvê-los. Mas Paola aponta caminhos para serem discutidos que podem melhorar o cenário, como maior diálogo entre a comunidade e a escola.Ela chama a atenção para expressões que hoje devem ser evitadas no Brasil, por serem consideradas racistas, mas ainda usadas em países lusófonos como Moçambique. Um exemplo é mulato, palavra utilizada para classificar alguém que é filho de uma pessoa branca e uma negra, mas na verdade sua origem está associada ao animal mula.Paola acredita que a mídia brasileira, que é muito seguida pelos moçambicanos, pode ajudar no processo de letramento racial. “Para nós na diáspora isso é racismo linguístico. Lá as pessoas acham isso a maior bobagem. Eu chegava a comentar isso com professores e muitas vezes eles não sabiam (a origem da palavra mulato). Isso só começou a ser falado (no Brasil) recentemente. Eu acho que da maneira como o Brasil tem influenciado as discussões em Moçambique – um país que fala português, gigante, que está super presente na internet, nas mídias – em pouco tempo essa discussão vai chegar lá também. E aí pode ser que a gente veja uma mudança”, aposta.
Mineira de Belo Horizonte, a doutora em História Liliane Faria Corrêa Pinto foi parar no Egito em 2018. Inicialmente para estudar viagens de Dom Pedro II ao país do norte africano, em 1871 e 1876. Nos arquivos pesquisados, ela conta que o monarca fazia sempre alguma associação com o que conhecia do Brasil ao descrever as pessoas. E até hoje é possível fazer esta comparação. Não raras vezes egípcios começam a conversar em árabe quando encontram algum brasileiro nas ruas acreditando que estão diante de um local por conta das semelhanças físicas. A civilização do Egito, país que hoje tem uma população de mais de 100 milhões de habitantes, teve a influência de diversos povos. E o mesmo fez o povo brasileiro ser o que é hoje.A historiadora pesquisa agora as semelhanças gastronômicas entre o Brasil e o Egito. Destacando que também gosta de Biologia, ela diz que sempre se preocupa com os ingredientes e com a história de cada um deles. “Porque como um ingrediente passa de um lugar para outro, muitas vezes eles vão por mãos humanas. Então você está vendo que ele é um elemento cultural”, afirmou, citando como exemplo um fruto que muitas vezes é preparado como se fosse um vegetal no Brasil.“O quiabo está muito presente na culinária egípcia. Eles fazem um quiabo com carne, que parece muito com frango com quiabo mineiro. Esse é um dos elementos principais do estudo da história da Gastronomia: há o processo da habilidade, quando você conhece uma comida de uma forma e quando você está em outro lugar, pega essa comida e transforma com os ingredientes que você tem para aproximar ao máximo do original. E, assim, os pratos vão se mantendo, mas com modificações”, explicou.Outro exemplo desta ligação, digamos, “pela mesa” com uma das civilizações mais antigas do mundo vem do Maranhão.“Especialmente na ilha, em São Luís, eles têm a comida que é o arroz de cuxá. É um arroz com a folha da hibiscus sabdariffa. É a mesma que faz o chá de hibisco que tem em Assuã (cidade egípcia). A folha dele é usada como uma comida tradicional maranhense e isso é especificamente do Sul do Egito e do Norte do Sudão”, afirma. “O cuxá é essa folha socadinha com vários temperos”, disse, imediatamente fazendo referência a um tradicional prato egípcio chamado molorreia, feito com uma folha também conhecida como espinafre árabe ou juta. Quem prova molorreia pela primeira vez tem a impressão de que é uma sopa feita com quiabo. “O gosto é muito parecido, com a diferença que o cuxá é um pouquinho mais azedo”, reforça.Mas a pesquisadora diz que a molorreia no Brasil é conhecida como caruru da Bahia. “É a folha de uma malvasia. Existe uma estrutura de similaridades, porque às vezes você não consegue o mesmo ingrediente, você consegue aproximar”, disse. No Egito come-se a molorreia com pão, enquanto o amido base que acompanha o prato no Maranhão é o arroz. “Ela disse que começou a refletir sobre como a comida poderia ser um elemento aproximador dos povos e suas experiências, até mesmo nos gestos mais sutis. Um exemplo é que em países africanos se vê alguém cozinhando e colocando um pouco da comida na mão para se provar, como normalmente se faz no Brasil, enquanto na Europa é mais comum que se leve a colher diretamente à boca.Mesmo que a maior parte dos africanos escravizados que foram traficados para o Brasil tenha vindo do oeste da África, os demais que eram de outras regiões também acabaram trazendo elementos da própria cultura, como os sudaneses que acabaram indo parar em Minas Gerais. “Eles eram escravos mineradores. E aí existe uma proximidade cultural muito grande entre o Sudão e o Sul do Egito”, destaca.Mas tem também uma segunda hipótese apontada pela historiadora. Uma séria de coisas chega ao Brasil via Portugal, no período colonial, mas na verdade é de uma cultura mediterrânea que, na verdade, vem do norte da África. Pensando desse jeito, há uma proximidade entre Portugal e o Egito, e consequentemente entre o Egito e o Brasil.Há também semelhanças quando falamos de sobremesas. O arroz doce brasileiro, por exemplo, é conhecido no Egito como pudim de arroz.E por falar em viagens de Dom Pedro II, depois dele Lula foi o único chefe de estado brasileiro a visitar oficialmente o Egito. A segunda e última vez foi em fevereiro.É difícil não descrever “a” culinária brasileira com uma palavra que não seja diversa, porque é mesmo o resultado, muitas vezes adaptado, de várias influências. “Por exemplo, o que a gente fez com o cachorro-quente? Fizemos a salsicha mais gostosa e colocamos salada. Tem também purê de batata em São Paulo.Então ele se transforma em algo mais saudável do que só um pão com salsicha”, afirmou.Pelas ruas do Cairo, onde há muitos restaurantes de fast food hoje em dia, se percebe que o Egito também vem sendo influenciado pelo Ocidente, mas a pesquisadora mineira destaca que o jeito que cada país abraçou o que veio de fora foi diferente. Há uma resistência maior da tradicional cozinha egípcia. “O Egito ainda precisa construir gastronomicamente essa relação entre o que eles têm para oferecer enquanto comida tradicional egípcia e como isso vai ser adaptando. Eles têm um tradicionalismo muito grande na alimentação, que é uma referência. Eles comem comidas que eram comidas no Egito Antigo”, disse. E falar sobre o Egito Antigo é falar sobre milhares de anos da história humana.Ao visitar templos egípcios, Liliane diz que também tirou fotos de imagens que fazem referência à comida. “O que estou fazendo agora é exatamente isso: tentar aproximar e identificar essas comidas antigas para poder fazer mais ainda essa ponte com o Brasil”, encerrou.
Moçambique, Etiópia e Egito devem estar no roteiro da primeira viagem internacional que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva quer fazer este ano. A visita está sendo organizada para a segunda quinzena de fevereiro. Mas além da retomada das viagens, outros desafios deverão ser superados para efetivar a reaproximação entre o Brasil e o continente africano, apontam especialistas. Vinicius Assis, do Cairo (Egito) para RFI BrasilA maior expectativa é sobre a passagem do presidente pela capital etíope, onde Lula deve participar da abertura da cúpula da União Africana. Ele fará um discurso não só como chefe de Estado, mas como líder do país que ocupa a presidência rotativa do G20.A última parada da viagem deve ser no Cairo, mas tudo sobre esta visita ao continente africano ainda está em processo de confirmação, inclusive a logística e as agendas bilaterais. A RFI conversou nas últimas semanas com diversas pessoas que acompanham o assunto e são entusiastas da reaproximação do Brasil com a África, prometida pelo presidente Lula depois do distanciamento, diplomático e comercial, causado pelo governo de Jair Bolsonaro, que não fez sequer uma visita oficial a um país africano.“O que se espera é que o Brasil possa apresentar uma agenda concreta de iniciativas e ações, não apenas do ponto de vista governamental, mas também como incentivar a participação do setor privado” disse João Bosco Monte, fundador e presidente do Instituto Brasil África (Ibraf).O presidente global da Fairfax Africa Fund, LLC (U.S), Zemedeneh Negatu, recomenda que o presidente priorize o continente africano em seu governo, em particular grandes países que são geopolítica e economicamente influentes, para além das suas fronteiras – com destaque para os três membros africanos do novo Brics, África do Sul, Etiópia e Egito, e a Nigéria, apontada como “a futura membro” do bloco de emergentes.O investidor etíope-estadunidense também ressaltou que o Brasil deveria fortalecer o seu relacionamento com instituições pan-africanas, como a União Africana e o Banco Africano de Desenvolvimento. “Recentemente conheci muitas empresas brasileiras que estão interessadas em fazer negócios na África, mas que precisarão do apoio financeiro e diplomático do governo brasileiro para investir com sucesso ou mesmo para exportar os seus produtos”, disse.Falta de estratégiaMas nem todos os diplomatas e embaixadores que atuam em países africanos com os quais a reportagem conversou estão muito otimistas. Fala-se em falta de planejamento no Itamaraty para a África e a necessidade de mudança do discurso do presidente sobre o continente. “Essa mensagem de que ‘temos uma dívida histórica’ é ultrapassada, com todo o meu respeito às vítimas dos fatos históricos e seus descendentes, mas a África do século 21 quer ser vista de outra forma, como a China, Índia e Turquia estão olhando para ela, por exemplo”, disse um diplomata sob condição de anonimato.O presidente do Ibraf destaca a importância de se falar em reparação, mas lembra que o momento agora é de ir além do discurso. “Precisamos apresentar um projeto mais ousado, trazer uma agenda de ideias e ações. Como empresas africanas podem se aproximar de parceiros brasileiros? Diversas nações já se aproximaram da África e muitas vezes sem qualquer ligação, como o Brasil tem, só que eles trazem uma agenda bem pragmática e o Brasil precisa apresentar isso para se reaproximar da África”, completou.Estima-se que até 2050, um quarto da população mundial seja africana. A região é rica em minerais como coltan, que é fundamental para a produção de baterias de celulares, carros elétricos e outros equipamentos eletrônicos. A África tem hoje a população mais jovem do planeta e possui, principalmente, duas agendas em comum com o Brasil: mineração e agricultura.O investidor Zemedeneh Negatu reforçou que o governo Lula deveria ampliar o apoio às empresas brasileiras. “A China – um membro fundador do Brics, como o Brasil – tem apoiado com sucesso empresas chinesas ao investir e comercializar na África. As principais economias europeias, como o Reino Unido e a França, também apoiaram as suas empresas para se expandirem na África. E ainda assim, o Brasil, a nona maior economia do mundo, tem uma presença muito pequena na África”, comparou.O leste do gigantesco continente africano tem sido o foco do empresário Paulo Pan, à frente do grupo Beyond Africa, em especial por conta da importância regional crescente de Adis Abeba. “Justamente para trazer o benefício que a Etiópia tem hoje de ter uma companhia aérea fazendo voo direto, com uma infraestrutura aeroportuária importante e que sirva de conexão para levar os passageiros para Quênia, Tanzânia, Uganda”, sinalizou.Uma das áreas de interesse do empresário é o esporte. “O Brasil e o continente africano, quase que como um todo, desfrutam da mesma paixão, que é o futebol. É a primeira base de movimento diplomático para aproximar qualquer um dos países africanos”, afirmou Paulo Pan, que já conduz um projeto com a Unesco no Camarões e pretende levá-lo para outros países africanos, aumentando, também, o intercâmbio esportivo com o Brasil.Qualidade x quantidade de embaixadasNo fim do ano passado, o Itamaraty anunciou que o Brasil abrirá mais duas embaixadas no continente, em Serra Leoa e Ruanda, além do novo consulado-geral em Luanda. A notícia não foi muito bem recebida por todos no Itamaraty, que sabem da precariedade de alguns postos no continente africano onde os respectivos embaixadores trabalham sozinhos, como em Burkina Faso, Camarões e Togo.Para o embaixador aposentado Paulo Roberto de Almeida, que atualmente é diretor de Relações Internacionais do Instituto Histórico e Geográfico de Brasília, o Brasil realmente “voltou”, como prega Lula, e haverá novas iniciativas em diferentes países. Mas ele acredita que não é certo que isso passe pelo número de embaixadas na região.“Lula está trocando a qualidade pela quantidade. Existem muitas embaixadas em diferentes países africanos que estão efetivamente sublotadas, sem condições, portanto, de desenvolver um trabalho diplomático de maior escopo e amplitude cultural, econômica e comercial”, ponderou.O Ministério das Relações Exteriores (MRE) usa as letras A, B, C e D para classificar a importância dos postos nos países com os quais o Brasil se relaciona. Quase todos na África recebem as letras C ou D, o que significa que ainda são consideradas menos importantes para a política externa brasileira.Com base da Lei da Acesso à informação, a reportagem pediu ao MRE as comunicações telegráficas das representações diplomáticas do Brasil no exterior referentes a sublotação, falta de recursos humanos, pedidos de contratação e condições dos postos C e D em 2022 e 2023. Alegando se tratar de uma solicitação muito ampla, o ministério pediu que a demanda fosse detalhada para não sobrecarregar o setor, com 8 servidores, destinado a este atendimento. Em uma pesquisa preliminar, 742 correspondências que poderiam se enquadrar no pedido foram encontradas.A reportagem não recorreu por entender que a resposta já era suficiente para se ter uma noção sobre um problema que tem sobrecarregado alguns diplomatas que atuam na África.Aberturas e fechamentos de representações diplomáticasEntre 2002 e 2020, o Brasil abriu 18 embaixadas no continente africano, além do consulado-geral de Lagos, que sucedeu a embaixada brasileira na Nigéria quando esta foi transferida para Abuja. Jair Bolsonaro fechou três embaixadas na África (no Maláui, na Libéria e em Serra Leoa, que será reaberta pelo atual governo). Atualmente o Brasil tem 33 embaixadas e dois consulados-gerais em países africanos.Ainda na opinião de Paulo Roberto de Almeida, é preciso pensar na relação custo-benefício e no quanto a abertura de novos postos custaria para o Itamaraty em termos de manutenção. “Uma embaixada não sai por menos de meio milhão de dólares por ano e o retorno às vezes não justifica”, disse.No corpo diplomático há quem defenda que o MRE deveria designar um embaixador a mais para a Etiópia, trabalhando exclusivamente com a União Africana, função que hoje é acumulada pelo embaixador que também cuida da relação entre os governos brasileiro e etíope.No ano passado, Lula esteve na África do Sul para a cúpula do Brics. Em seguida visitou Angola e São Tomé e Príncipe, onde participou da cúpula da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa).Em Luanda, chegou a falar sobre empresas brasileiras voltarem a investir no continente africano, mas não apresentou qualquer projeto de incentivo.“O Brasil, durante algum tempo, teve uma agenda de financiamento de projetos para empresas brasileiras em ambientes africanos. Eu me lembro da inauguração do escritório do BNDES em Joanesburgo, que foi muito bem recebido pela comunidade africana, pelos empresários do continente”, mencionou João Bosco Monte.Este escritório, porém, foi fechado no governo de Michel Temer. “É importante que isso volte. Sem financiamento é muito difícil que empresas africanas e brasileiras possam dialogar”, ressaltou o presidente do Ibraf.Este ano, Lula pretende fazer duas viagens para o continente africano. A segunda visita deve ser no segundo semestre, com Nigéria e Senegal provavelmente no roteiro. Ainda em 2024 o Brasil receberá representantes da União Africana e da África do Sul, membros do G20, no contexto da cúpula do bloco que este ano acontece no Brasil. Outros três países da África foram convidados pelo governo brasileiro para o evento: Angola, Nigéria e Egito.
Com o início da guerra na Faixa de Gaza, alunos de cinema da Universidade Americana no Cairo, no Egito, organizaram uma mostra de filmes que podem ajudar a compreender a complexa relação entre autoridades israelenses e palestinas. A exibição é semanal. Vinícius Assis, correspondente da RFI no EgitoNo chuvoso fim de tarde do último domingo (19), quase todos os 60 lugares do auditório da Universidade Americana no Cairo foram ocupados por quem quis ver “O que Resta do Tempo”, do consagrado diretor palestino Elia Suleiman.O filme, aliás, também começa com uma cena chuvosa, onde o cineasta, que é personagem da obra, encara uma tempestade de raios. Lançado em 2009, este trabalho foi baseado em cartas dos pais do cineasta e retrata momentos importantes da vida da família de Suleiman e do povo palestino.Os alunos são orientados pelo brasileiro Rodrigo Brum, professor de cinema da universidade. Ele acredita na função educacional da sétima arte, o que considera uma ferramenta eficaz para contar histórias e estimular reflexões.Durante a entrevista, Rodrigo recomendou filmes palestinos, alegando que são fundamentais para uma compreensão mais profunda da cultura e da realidade palestinas, assim como do momento atual. Segundo ele, o mundo “assiste em tempo real, sem necessariamente entender, por exemplo, porque dois milhões de pessoas vivem encarceradas na Faixa de Gaza, sem direito a passaporte, a visitar familiares na Cisjordânia”.Além de "O que Resta do Tempo", o brasileiro também recomendou os filmes "Canada Park", da diretora Razan Alsalah, "Ghost Hunting", dirigido por Raed Andoni, e "Home Movies Gaza", da cineasta Basma Alsharif. “Acho que podem oferecer aos estudantes e professores de cinema um panorama muito mais complexo, não só das razões históricas do massacre que a gente está presenciando, mas também um panorama de um cinema altamente criativo, politizado feito por cineastas palestinos em Gaza, na Cisjordânia ou na diáspora”, disse.Escolha dos filmes da mostraOs filmes da mostra são escolhidos pelos alunos e apresentados ao professor. Nem todos foram feitos, necessariamente, por algum cineasta palestino. Recentemente os estudantes quiseram exibir "Aqui e em Qualquer Lugar", documentário de 1976 que tem o francês Jean-Luc Godard como um dos diretores.Mas todos os filmes selecionados pelos estudantes nesta mostra lidam com a questão do povo palestino. “Eles têm toda a independência para decidir os filmes que vão exibir a cada semana. O que a gente faz é auxiliar. Às vezes eles têm uma dúvida ou querem uma sugestão e a gente está em contato com eles, mas a ideia, e foi uma decisão deles, é que, enquanto continuar o conflito, os filmes exibidos vão ter, de alguma forma, um diálogo com a questão Palestina”, destacou Rodrigo.Tentando encontrar a melhor maneira de explorar as razões e os elementos trágicos do conflito, depois das exibições os participantes organizam discussões sobre os filmes. O brasileiro ressalta que às vezes essas conversas duram mais do que o tempo das obras exibidas e também são sobre a linguagem dos filmes e como o que foi exibido tocou cada um no auditório.Plataforma para jovens cineastasNascido em Petrópolis (RJ), o brasileiro é formado em filosofia. Depois de um mestrado em Cinema, Vídeo, Novas Mídias e Animação em Chicago, nos Estados Unidos, ele veio para o Egito em 2018. Estava em Cabo Verde gravando um documentário quando recebeu o convite de uma amiga - com quem estudou nos Estados Unidos - para gravar um filme com ela no país árabe. Mas “complicações, em termos de execução”, inviabilizaram a produção.Rodrigo continuou vivendo no Egito, onde hoje é professor e também tem uma produtora que se propõe a ajudar novos cineastas. “Na verdade é uma ‘ação entre amigos’, que funciona como uma espécie de plataforma para jovens cineastas e cineastas emergentes encontrarem as melhores condições de concluírem seus primeiros projetos, suas primeiras obras audiovisuais” disse.O brasileiro já terminou o período de filmagens do documentário que foi fazer em Cabo Verde, um dos nove países onde também se fala português no planeta. Agora ele trabalha na montagem e edição do material, mas conciliando com outras atividades que desenvolve atualmente.O filme é sobre um vilarejo supostamente abandonado no meio da Serra da Malagueta, na Ilha de Santiago, uma das 10 que formam o arquipélago de Cabo Verde. Segundo Rodrigo, duas pessoas seguem vivendo lá. O brasileiro foi várias vezes ao local gravar com os habitantes a realidade do vilarejo, que no filme tem um paralelo com outras duas histórias. Uma é a de um barco que fazia a conexão entre as ilhas e foi desmantelado, e a outra é sobre um professor que está tentando ensinar um livro, o, talvez, romance mais importante da literatura cabo-verdiana chamado "Chiquinho". “Imagino que em dois ou três anos, no máximo, o filme seja lançado”, disse.Olhar ao continente africanoRodrigo afirma que, “inclusive por razões históricas”, profissionais do cinema brasileiro deveriam olhar para o continente africano. De acordo com ele, o movimento chamado de "Terceiro Cinema", que emergiu nos anos 1960, com a ideia de se opor ao "primeiro cinema" - que seria Hollywood - e ao "segundo cinema" - que seria o cinema europeu - era uma ação transnacional de colaboração entre agentes da Ásia, da África e da América do Sul. “Infelizmente, isso se perdeu um pouco com o tempo”, lembra.Rodrigo diz estar muito seguro de que a África tem muito mais relação com o tipo de cinema que se faz no Brasil e com questões enfrentadas no país do que o cinema norte-americano, por exemplo. “Seria muito importante que produtores brasileiros ou as próprias agências de fomento do Brasil tivessem um olhar especial para o continente africano porque eu acho que, por razões históricas, e também por afinidades de narrativa, teria muito espaço para colaboração”, afirmou.Para ele é muito difícil falar de um cinema africano. “A África é um continente com países que têm suas especificidades de produção”, lembrou, destacando a Nigéria, a África do Sul e o Egito, que é um importantíssimo polo de produção cinematográfica do mundo árabe. “Países com realidades de produção muito distintas, mas que também têm muitas afinidades com o tipo de produção cinematográfica que a gente tem no continente sul-americano”, lembrou.As limitações financeiras e técnicas eventualmente acabam aproximando profissionais desta área dos dois lados do Atlântico, principalmente em se tratando de jovens cineastas ou aqueles que estão fora dos grandes centros de produção. “Acho que existe uma afinidade muito grande e uma colaboração entre esses países seria fundamental, inclusive para redefinir padrões estéticos e de produção do cinema global”, concluiu.O brasileiro lembra que “cinema também serve para gerar empatia, entendimento, reencontrar narrativas marginalizadas”, e a sétima arte não perde sua importância em tempos atuais. Ele lembra do diretor senegalês Ousmane Sembène, para quem o cinema é uma escola noturna. “Eu acredito que no escuro, diante de uma tela, seja de computador, em uma sala de cinema, o espectador acaba entrando em contato com realidades e pensamentos que eram, até então, impensáveis para ele”, finalizou.
Nas grandes cidades africanas é possível ver, cada vez mais, pessoas nas ruas usando réplicas de roupas e acessórios de famosas grifes ocidentais, jeans, moletons, bolsas, entre outros. Produtos originais também são encontrados, mas os falsos são mais baratos e, com isso, mais populares. Peças coloridas consideradas tradicionais do continente africano são menos procuradas pelos mais jovens, fato que a estilista brasileira Rita Cazergues lamenta: “Os africanos são coloridos, são alegres e a moda africana tem uma história”, frisou. Vinícius Assis, correspondente da RFI em JoanesburgoPor mais características em comum que se possa ter, “tecido africano” não é tudo igual. Há estampas que representam etnias, passam certas mensagens. Durante a entrevista, ela reforçou que as pessoas precisam dar mais valor ao trabalho dos africanos. “Valorizar a moda africana, os tecidos africanos. A moda africana não é só aquele tecido enrolado na cabeça ou no corpo das africanas. Eu falo moda africana: colares, joias, vestido de gala”, completou.Segundo a estilista, essa valorização precisa também ser disseminada entre os locais. “Os africanos têm um pouco de preconceito”, diz a brasileira, que prega a ideia de uma “moda consciente” ao criticar a indústria da pirataria. “Você vê na rua essas camisetas com todas essas marcas (estampadas), mas que você vê que não são feitas no país, que vêm não se sabe de onde, como foram feitas, o (tipo de) material”, ressaltou. A estilista é enfática ao bater na mesma tecla pelo apreço de produtos feitos localmente e da estima da mão de obra. “Uma moda feita com carinho, uma moda feita com boas energias. Isso é muito importante. Moda não é só brilhar, (moda) marca”, disse.Desde o ano passado ela vive em Maputo, capital de Moçambique. Nos últimos 17 anos - desde que se mudou para o continente africano - a brasileira também já morou na República Democrática do Congo e em Angola, que foi primeiro país da África para onde se mudou depois que se casou com um executivo francês de uma grande montadora de veículos. Nascida em Guaxupé, interior de Minas Gerais, Rita aprendeu a costurar com uma tia. Cresceu desenhando as próprias fantasias para os tradicionais bailes de carnaval e sendo chamada pela mãe de “diferente”. Ela fez seus estudos universitários em Ciências Contábeis, e chegou a trabalhar na área de recursos humanos. Mas abandonou a carreira para acompanhar o marido, que a preveniu sobre mudar de país constantemente, por conta do trabalho. No entanto, Rita sabia que não ficaria de braços cruzados.Em 2006, recém-chegados em Luanda, capital angolana, ela precisou fazer o próprio vestido para ir a um casamento. E foi, então, apresentada aos tecidos vendidos localmente. A roupa criada por ela para o casamento fez tanto sucesso que Rita acabou posteriormente criando a própria marca, na qual oferece peças exclusivas e coloridas. Figuras importantes como a princesa Stéphanie de Mônaco já usaram as criações da brasileira, que não considera o que faz uma apropriação cultural.“Eu estou hoje em Maputo, eu gosto das cores, sou brasileira. Têm as minhas raízes, as influências, aquela coisa que a gente nunca vai poder dizer que não existe dentro da gente. As coisas que eu faço são diferenciadas e eu posso juntar esse meu lado brasileiro, europeu com África e por isso eu nunca enfrentei esse tipo de problema”, disse.Rita tem atualmente um time de dez pessoas fabricando as roupas e acessórios que ela desenha, sendo na maioria homens. “Eu acho que o homem tem aquele amor, aquela paixão por aquilo que ele faz. Tem homem que os olhos deles brilham quando ele vê aquela peça naquela manequim, porque ele faz com tanto amor, com tanta paixão. Para mim é uma coisa muito importante. Eu gosto de trabalhar com homens”, destacou.Contudo, no dia a dia às vezes ela enfrenta desafios por conta do machismo de uma região ainda bastante patriarcal. “Eu tive um único problema na minha vida com um (funcionário) homem. Na verdade, os homens não gostam muito de serem comandados pelas mulheres”, enfatiza, contando que já chegou a dar orientações aos costureiros que insistiam em querer fazer o trabalho do jeito que queriam.A brasileira também comenta da tendência de uma mudança de comportamento com os artesãos que atualmente trabalham com ela, eles agora são mais jovens. “Eu acho que eles são diferentes. A mentalidade é outra. É mais fácil lidar com eles agora do que com os antigos”, comparou. Rita contou que também contrata mulheres, mas para trabalhos menores, como a confecção de bordados e bijuterias. Atividades que podem ser realizadas em casa, sem que as mães precisem se separar dos seus filhos. A menina que sonhava com a Europa se tornou uma mulher que viu sua vida tomar outro rumo ao casar com um europeu, mas a mudança para a África, um continente diverso pelo qual ela se mostra apaixonada, ao contrário de muitos amigos que ainda se guiam por estereótipos. “ A África é maravilhosa, as pessoas, o ser humano. Eu amei o Congo, amei Angola, amo Moçambique. E eu dou um conselho: a gente tem que ver para crer, tem que viajar para descobrir”, finalizou.
Um convite para trabalhar em uma companhia aérea, tendo um cargo de liderança no setor de transporte de cargas, fez o gaúcho Marcos Brandalise trocar a Alemanha, onde vivia recém-casado com uma alemã, por Angola, em 1988, em plena guerra civil que marcou a história do país lusófono. Vinícius Assis, correspondente da RFI em Adis AbebaCinco anos depois, ele foi transferido para o leste africano. E foi no Quênia, uma das maiores economias africanas, que ele decidiu viver com a família e criar, em 1996, a própria empresa para apresentar, nesta região, as soluções com bons resultados para o Brasil em anos anteriores, especialmente na agricultura. Marcos começou a representar empresas brasileiras por aqui. “A gente viu o que aconteceu no Brasil nos anos 1970, 1980, 1990 e o que ainda está acontecendo. A gente imagina e tem esperança de que a África vai seguir o mesmo caminho do Brasil. O potencial aqui é fenomenal”, disse. Ele representa atualmente cerca de 15 companhias brasileiras e vende de chuveiros elétricos à maquinário agrícola.O Quênia enfrenta uma onda de protestos contra o novo governo por conta do custo de vida no país, que vem aumentando. Mas as recentes manifestações não são as primeiras que ele testemunha e isso não intimida um dos empresários brasileiros mais antigos - se não o mais antigo - investindo e vivendo no complexo e promissor continente africano. Teimoso autodeclarado, é um entusiasta da ideia de que o Brasil deve olhar mais para as oportunidades e desenvolver parcerias com o segundo continente mais populoso do planeta, apesar dos desafios dessa região que, até seis décadas atrás, era dominada por colonizadores europeus. “O processo de se desvencilhar dos colonialistas começou nos anos 1960. Então, são democracias ou governanças recentes. O processo deles é muito mais jovem. Tem muita coisa ainda para eles passarem para chegar em um nível de estabilidade governamental”, disse.Muitas realidadesEste assunto foi abordado na entrevista não só por conta dos protestos recentes no Quênia, mas porque o receio de golpes militares e o clima de instabilidade política acaba sendo um dos motivos para que empresários brasileiros sejam reticentes em se tratando do continente que, até 2050, deverá concentrar 25% da população mundial. O brasileiro reforçou ao longo da entrevista a diversidade da África, que muitos parecem ignorar ao olhar para esta parte do planeta de forma homogeneizada. “São 54 países e cada país é uma cultura”, destaca, embora reconheça que há similaridades. “Cada país é um país, não dá pra generalizar ‘África’. Tem que olhar para cada país de uma forma diferente. Tem uns com muito mais risco, outros com muito menos risco e outros sem risco”, reforça.O brasileiro se mostra otimista em se tratando das novas gerações de africanos. “O continente está experimentando um momento super interessante. As gerações novas, bem educadas, localmente ou internacionalmente, estão voltando com boas ideias e querem inovar. E a agricultura, nos últimos anos, tem sido uma área em que eles têm muito interesse”, disse.Com uma visão pragmática e realista, o brasileiro que vive há mais de 30 anos no continente africano não romantiza o seu discurso para estimular investimentos nesta região. “Tem muitos ‘buracos’: o buraco cultural, o buraco político. Por exemplo, em agricultura, a vida animal selvagem é enorme aqui na África, em vários países. Então, isso conta para ter cuidado, para não prejudicar essa vida, que é uma riqueza africana, mas também um desafio para a agricultura”, frisou. O pastoralismo que ainda existe em grande escala é outro “buraco” destacado por Marcos para se ter cuidado, assim como títulos de terras. “Uma das nossas vantagens é que a gente entende a cultura e a gente entende como lidar com comunidades, com a vida animal selvagem e outras coisas. Não dá para ignorar isso porque senão o pessoal falha, como falharam vários projetos de diferentes investidores de diferentes nações”, contou.OportunidadesO Brasil ainda apresenta ótimas oportunidades internas, o que faz com que empresários brasileiros nem sempre se interessem em cruzar o oceano Atlântico para aproveitar novos investimentos. Mas a falta de conhecimento e o fato de se basearem apenas em experiências que não deram certo também afastam investidores brasileiros do continente africano, na opinião do Marcos.Algo que pode estimular a implementação de projetos brasileiros na África seria o BNDES voltar a olhar para o continente. A internacionalização do Banco volta ao centro do debate entre especialistas agora no governo Lula. Embora o BNDES tenha sido criado em 1952, foi nos anos 2000 que se começou a ver apoio à internacionalização de empresas brasileiras. Chegou a ter três escritórios no exterior: em Montevidéu, Londres e Joanesburgo, aberto dez anos atrás. Os três foram fechados pouco depois de Michel Temer ter assumido a presidência. “Conheci o pessoal que tocava o BNDES em Joanesburgo. Fizeram bastante esforços para entrarem no continente e financiar alguns programas, mas eles se depararam com uma coisa óbvia: outros países também têm programas similares. As iniciativas foram boas, o escritório de Joanesburgo era bom. A motivação estava lá, para fazer a coisa acontecer, mas infelizmente, falhou em algum lugar que eu não tenho capacidade de avaliar”, observou.Um assunto sobre o qual a reportagem também ouviu o presidente do Instituto Brasil-África (IBRAF), João Bosco Monte, que destacou duas falhas. “Foram menos de três anos de operação no continente e o banco não disse exatamente qual era seu interesse naquele espaço. Não dá para cobrir todo o continente com o pessoal escasso. Não era uma equipe muito generosa, muito grande. E o segundo erro foi que as empresas brasileiras não sabiam da existência de um banco de financiamento de empresas brasileiras na África. Então, o desconhecimento talvez foi o erro fatal”, esclareceu.O empresário gaúcho destacou que há, ainda, um grande potencial nesta região. “Mas temos que lembrar que têm muitos competidores entrando na África, especialmente agora. Então, tem que haver uma mudança, talvez. Uma reavaliação de como a gente entra com financiamento e tudo mais, que é importantíssimo e pode facilitar muito o investimento do brasileiro no continente e a visão do continente com o Brasil (pode) melhorar também”, disse.Marcos reconheceu que, no passado, o presidente Lula reaproximou o continente africano do Brasil, mas criticou o modo que isso foi feito. “Ele deu muito suporte a grande empreiteiras. Acho que pequenas atividades teriam tido mais resultado”, ponderou.O presidente do IBRAF também acha que não só as “campeãs” podem ter acesso ao financiamento do banco. “Outras empresas médias e pequenas também podem e devem ter condições de conversar e fazer negócios na África com a parceria do BNDES de forma objetiva e direta”, reforçou. Para João Bosco, é preciso repensar o apoio governamental, através de um banco de financiamento para que marcas, produtos e serviços do Brasil cheguem a espaços africanos, mas também colaborando com o outro lado. “Empresas africanas também podem se interessar em fazer negócios com o Brasil e no Brasil a partir de uma representação maior nossa no continente africano”, concluiu.Ao falar com a RFI, Marcos Brandalise disse discordar de algumas políticas do Itamaraty e diz que investidores de países como Itália, Turquia e China, por exemplo, têm mais apoio de seus governos. “O Brasil ainda está em uma fase precoce em se tratando de fazer negócio internacional. Eles ainda têm uma visão, eu diria, arcaica de como fazer negócio internacionalmente”, observa, deixando claro que ainda “tem um grande caminho para ser trilhado pelo governo brasileiro para melhorar as relações entre África e o Brasil”.BRICSO presidente Lula deve fazer a primeira viagem, deste terceiro mandato, para o continente africano somente em agosto, quando participará da cúpula do BRICS, na África do Sul. Na entrevista, Marcos afirmou que acha o BRICS uma associação super interessante, mas que pode ser melhor explorada. Ressalta que ainda é preciso ter cuidado com países do hemisfério norte, que detém hegemonia em vários aspectos. “O Brasil tem que continuar fazendo o papel dele de neutralidade, em vários aspectos, mas tem que ver a parte dele na economia. O BRICS pode ser tão importante para o Brasil como todos os outros blocos econômicos que existem no mundo. O Brasil é e tem que continuar sendo amigo de todos os blocos”, disse.O empresário segue a lógica do quanto maior o risco, maior pode ser a margem de lucro. E destaca que há “um potencial fenomenal” em se tratando da relação do Brasil com o continente africano. “Porque o africano gosta do brasileiro e quer fazer negócio com o Brasil, mas os mecanismos não existem efetivamente”, ressaltou.
O ritmo que embala o carnaval brasileiro também é nome próprio na Gâmbia, país da África Ocidental onde o jornalista Samba Jawo nasceu. Encontrar “xarás” não é dificuldade alguma para ele. “É um nome muito comum na etnia Fulani. Na nossa cultura significa o segundo filho”, explica o gambiano que tem um irmão mais velho e três mais novos. Fã declarado de futebol, ele diz que foi por meio deste esporte que conheceu o ritmo brasileiro mais famoso, que tem o mesmo nome que ele. Vinícius Assis, correspondente da RFI em Adis Abeba, EtiópiaHá séculos, muitas pessoas em países do continente africano, principalmente na região do Sahel, recebem o mesmo nome que o cantor brasileiro Seu Jorge e sua companheira, Karina Barbieri, resolveram dar ao seu filho. Mas, no Brasil, a escolha causou polêmica no mês passado, quando o bebê nasceu.Uma funcionária do 28º Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, na maternidade onde a criança nasceu, no bairro Itaim Bibi, Zona Sul da capital paulista, se recusou a emitir a certidão de nascimento do menino por considerar o nome “incomum". O caso foi parar na Justiça e terminou com vitória para os pais. Seu Jorge agora é, mesmo, o pai do Samba.O jornalista da Gâmbia se mostrou surpreso ao saber da situação enfrentada pelo cantor brasileiro e sua companheira. “É direito deles dar ao filho o nome que quiserem, e negar isso é violar o direito do casal”, comentou.No Brasil, a norma nos cartórios é seguir a lei 6.015, criada em 1973, que regulamenta os registros públicos no país. E foi baseada no artigo 55 desta lei que a oficial do cartório se negou a registrar a criança como Samba em São Paulo. O primeiro parágrafo deste artigo da lei afirma que: O oficial de registro civil não registrará prenomes suscetíveis de expor ao ridículo seus portadores, observado que, quando os genitores não se conformarem com a recusa do oficial, este submeterá por escrito o caso à decisão do juiz competente, independentemente da cobrança de quaisquer emolumentos. Mas para o pesquisador de culturas negras e história da África Salloma Salomão, o episódio foi uma prática autoritária do cartório. “Os ativistas negros no Brasil, a partir da década de 1940, começaram a colocar nomes africanos ou indígenas nos filhos. Nós estamos vivendo, talvez, o terceiro ciclo dessa prática, que ė uma tentativa de reconexão com as civilizações africanas. Mas a estrutura institucional brasileira continua sendo o que sempre foi: racista”, ele critica. "Samba, Sambo, Sambe, Sambará"O pesquisador lembra que, quando escravizados, os africanos eram seres humanos que tinham nomes, identidades, comunidades, cultura, civilização. Eles passaram a ser capturados e exportados como se fossem objetos. E essas pessoas de origem centro-africana, em sua maioria, ocasionalmente poderiam ter na origem o nome Samba ou outras variações, como Sambeh e Sambará.“Nomes nativos, mas também de influência islâmica, hebraica, aramaica”, ele explica. Salomão conta que analisou recentemente arquivos de viagens marítimas entre 1807 e 1850. De acordo com o pesquisador, navios foram capturados pela marinha britânica e desviados para a Libéria e Serra Leoa.As pessoas nessas embarcações foram recapturadas pelos ingleses e catalogadas mediante nome, idade aproximada, origem étnica. “Nos documentos daqueles que foram recapturados pela marinha britânica há aproximadamente 200 pessoas com nome Samba, Sambo, Sambe, Sambará”, afirma.Dentro de uma pesquisa mais ampla que ele tem feito sobre o gênero musical conhecido no Brasil desde o inicio do século 20 como samba, o pesquisador destaca que o gênero urbano nunca foi associado a uma pessoa. Mas na África Central, e mesmo no Senegal, samba é nome próprio. “Na costa atlântica, na costa índica e na região dos lagos, tinha e tem pessoas de nome samba e também suas derivações”, ele explica.Não deixar um negro usar o nome que quiser não é novidade. Ele ainda destaca que no passado não era permitido às pessoas escravizadas manter seus nomes africanos. Na maioria das vezes, estas recebiam nomes comuns na cultura de quem os capturavam. “Em situações muito especiais, pessoas africanas capturadas, transformadas em escravizadas e que obtinham sua liberdade, conseguiam recuperar seus nomes de origem”, ressalta Salomão.Bairro em LuandaSamba também é o nome de um bairro em Luanda, capital de Angola, onde há ainda um estilo musical de raiz chamado semba, palavra que significa umbigada em kimbundu, um dos idiomas falados em Angola. “A teoria para o gênero musical samba é que este deriva de um gênero musical chamado semba da região onde hoje é Angola, mas essas duas palavras coabitam em Angola”, esclareceu o pesquisador.De acordo com sua hipótese, uma pessoa de nome Samba produzia uma musicalidade no nordeste brasileiro, por volta de 1820. Essa pessoa era uma liderança muito importantemente entre libertos, alforriados e escravizados. “As festas que essa pessoa chamada Samba, que não dá para saber se era homem ou mulher, produzia eram de tal forma importantes que derivaram o nome de uma prática cultural. Essa é minha hipótese”, revela. O pesquisador conclui afirmando que “o racismo só é eficiente porque é combinado com uma profunda ignorância”.A brasileira Sara Rodrigues conta que há quase dez anos conheceu um homem vindo de um país africano que se chamava Samba. Ele fazia intercâmbio na Universidade Federal da Bahia. Atualmente a baiana mora na África do Sul, onde o significado do nome é algo considerado especial na cultura negra local.“O nome da minha filha, de pai preto sul-alfricano, é Kwena, que significa crocodilo. O significado em si não se trata do crocodilo, mas do que o animal representa”, ela explica.A menina foi registrada no Brasil. A mãe, que faz mestrado na área de Literatura e Cultura, conta que não teve problemas com o registro, e destaca que deu à menina um nome composto: Kwena Dandara. Quando um estrangeiro de nome “incomum” se apresenta a um negro na África do Sul costuma ser indagado sobre o significado do nome.Nelson "Rolihlahla" MandelaAinda de acordo com a brasileira, que pesquisa culturas sul-africanas na Cidade do Cabo, antigamente era comum colocar nome composto no país onde vive. “Um em língua indígena e outro bíblico”, esclarece.O sul-africano mais famoso do mundo ficou internacionalmente conhecido por um nome que não era originalmente seu. Nelson Mandela se chamava, na verdade, Rolihlahla, que significa "aquele que veio para fazer barulho". Mas era comum na época em que ele começou a ir para a escola que professores ingleses mudassem os nomes dos alunos negros na África do Sul.Se por um lado parece ser uma tendência ver brasileiros se inspirando no continente africano para escolher nomes de seus filhos, por outro, o Ocidente também ainda influencia pais africanos. É muito comum encontrar palavras em inglês usadas como nomes de pessoas, principalmente em uma parte específica do continente.“Geralmente, pessoas com nomes como Blessing, Sweetboy, Reason são mais encontradas no Zimbábue do que na África do Sul”, conta Sara, que incentiva o uso de nomes tradicionalmente africanos em crianças brasileiras, mas desde que os pais entendam seus significados, como fazem os africanos.
Desde abril, a carioca Mariana Abdalla mora em Moçambique, país africano de língua portuguesa famoso pelo litoral paradisíaco, mas que há cinco anos passou a ser motivo de preocupação internacional. A província de Cabo Delgado, no norte moçambicano, começou a ser alvo de ataques de terroristas ligados ao grupo Estado Islâmico em outubro de 2017. Vinicius Assis, correspondente da RFI na EtiópiaAs ações extremistas já causaram cerca de 4 mil mortes e fizeram quase um milhão de pessoas se deslocarem em Moçambique. Dados da Agência da ONU para Refugiados (Acnur) mostram que 946.508 vítimas fugiram das áreas onde viviam para tentar sobreviver.Mariana Abdalla mora atualmente na cidade de Pemba, capital desta província onde os ataques vêm acontecendo, a cerca de 2.500 km da capital moçambicana, Maputo. Ela tem tido contato direto com quem está sendo afetado por essa situação.“É um conflito que poucas pessoas conhecem”, nota a brasileira. Depois de seis meses e meio na região, ela conta que também acaba pegando um pouco as dores daqueles com os quais tem contato. “Você vê pessoas que estão há cinco anos se deslocando sem parar, sempre procurando um lugar mais estável”, detalhou.Segundo a brasileira, a maioria das pessoas afetadas por esses ataques viveu experiências muito traumáticas. “Presenciar um assassinato de ente queridos, filhos que não sabem onde estão os pais, órfãos, mães que deixaram os filhos, tudo isso também vai te afetando, e a empatia aflorando. Eu sinto que já estou muito impactada com tudo isso”, disse.Mariana começou cedo a entender, na prática, a ideia do que é ter uma vida de nômade. Ela passou parte da infância e da adolescência na Colômbia e na China com a família. A “paixão por outras culturas” a fez se formar em Relações Internacionais. A vontade de contar histórias, em vídeos e fotos, a levou a um mestrado mais voltado para a comunicação.Moçambique não foi o primeiro país africano que ela conheceu. Durante o mestrado, por exemplo, teve uma estadia em Uganda. Há quatro anos, ela trabalha para a ONG Médicos Sem Fronteiras. Hoje, é gestora de comunicação da organização em Moçambique.“É um lugar de difícil acesso. Por isso, é um privilégio, uma responsabilidade muito grande poder contar essas histórias, poder passar para outras pessoas o que está acontecendo”, disse.O cenário na região de Cabo Delgado ainda é volátil. As vítimas que sobreviveram aos conflitos estão constantemente com medo e traumatizadas. Algumas testemunharam massacres. Outras não sabem onde está parte da família. Como essa parcela da população carente já tinha preocupações suficientes para ter a saúde mental profundamente prejudicada, a pandemia do coronavírus não foi prioridade para quem vive nessa região do país.Os que já conseguem voltar para casa muitas vezes encontram seus imóveis destruídos. Tudo isso faz com que os afetados diretamente por esses ataques extremistas não consigam demonstrar expectativas de um futuro estável.Miséria e desalento“Aqui, quando eu pergunto ‘qual é o seu sonho?’, as pessoas têm muita dificuldade em, até mesmo, entender a pergunta. A falta de perspectiva é tão grande, eles estão em um estado de alerta, de sobrevivência tão grande que é muito difícil, até mesmo, pensar no futuro, no que gostariam para si mesmas, a não ser a sobrevivência de agora”, afirmou.Mariana diz que, mesmo vivendo nessa região, nunca encarou uma situação de risco. Ela se lembrou apenas de um período mais tenso.“Na época de junho e julho teve realmente uma onda de violência bastante forte aqui em Cabo Delgado e tiveram ataques mais perto do sul, perto da capital, Pemba, que é onde fica minha base na maior parte do tempo, quando não estou visitando nenhum projeto”, explicou Mariana. Como na época a organização para a qual ela trabalha tentou reduzir bastante a equipe na região, a ida da carioca ao Brasil, para renovação de visto, precisou ser adiantada.“Eu tinha que renovar meu visto no Brasil em duas semanas e eles me perguntaram se eu não podia ir um pouco antes, realmente como uma medida de segurança, para tentar ter o mínimo possível de pessoal aqui”, disse. Ela acabou passando três semanas no Brasil para cuidar da renovação do visto e voltou.O governo de Moçambique demorou muito a admitir a presença de terroristas no norte do país, onde atualmente estão tropas de Ruanda e da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) ajudando o Exército do país neste combate. Autoridades locais falam em libertação de territórios antes ocupados e uma melhora na região, com insurgentes mais fragilizados. Mas a realidade está longe de ser considerada tranquila e estável.Região rica em gás e pedras preciosasCabo Delgado é uma região rica em produção de gás natural e rubis, entre outros produtos. A exportação de madeira também tem um grande peso na economia da região, que ainda está na rota internacional do tráfico de drogas. Mas a população de Cabo Delgado pouco se beneficia das cifras produzidas pela riquezas desta parte do país. Os índices de pobreza e analfabetismo no norte de Moçambique também são altos.Como praticamente todas as pessoas que trabalham para ONGs em países africanos, Mariana não comenta as implicações políticas envolvendo esses ataques. A brasileira conta que apesar das dificuldades ao lidar com pessoas que enfrentam tantos problemas, o cenário atual no norte moçambicano a conquistou.Ela lembra que sua ideia, inicialmente, era ficar três meses em uma vaga temporária na equipe de comunicação em Moçambique. “Mas acabei ficando até agora e penso que vou ficar, pelo menos, até dezembro. O contexto, as necessidades, a importância de comunicar sobre esse conflito e o que as pessoas passam me conquistou, digamos assim, porque é uma realidade que poucos conhecem, especialmente no Brasil”, destacou.Mariana reforça que os ataques são localizados no norte de Moçambique, país que ela, inclusive, diz recomendar como destino turístico. Ela segue registrando o máximo que pode com suas câmeras, em uma região onde jornalistas nem sempre têm acesso.Questionada pela reportagem qual é o seu sonho, Mariana respondeu: “O meu sonho é que todas as crises, incluindo a de Moçambique, sejam escutadas da mesma forma", apontou. "Que tenham o mesmo peso, que não haja uma diferenciação tão grande. Pode parecer muito idealista, mas eu acho que esse é o espírito humanitário. Que todos sejam vistos e sejam escutados da mesma forma, e que a comunicação também tenha um papel igual nesse sentido”, concluiu.
Em uma recente reunião com cinco empresários negros na Nigéria, brasileiros não reconheceram Aliko Dangote, o homem mais rico de todo o continente africano, com um patrimônio líquido estimado em US$ 12,6 bilhões. “Para o olhar do empresário brasileiro, todas aquelas pessoas eram as mesmas, estavam vestidas da mesma forma”, relatou a historiadora Carolina Maíra Morais, que presenciou a cena. “Essa leitura rasa sobre o continente é que a gente, primeiro, precisa transpor quando chega do Brasil na África”, frisa. Vinícius de Assis, correspondente da RFI na ÁfricaNascida na Baixada Fluminense, há seis anos ela cruza o oceano Atlântico anualmente com destino ao continente africano, principalmente viajando para a Nigéria, país de origem do marido e sócio da brasileira, Ajoyemi Osunleye. Ela conta que percebeu, ao longo desse tempo, que existe uma dificuldade na linguagem cultural entre o empresariado brasileiro e o empresariado de países do continente africano, de uma maneira geral, com as suas particularidades. “São dificuldades, por exemplo, em relação a coisas muito simples, como o tempo, a maneira de falar, a maneira de você se referenciar a pessoa”, disse.Foi aí que a historiadora decidiu, no ano passado, buscar mais um mestrado. Além do que fez em História da África, agora se dedica ao Comércio Exterior, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ela pesquisa essa linguagem, pensando sempre no que pode fazer para facilitar essas relações. “A gente tem um potencial gigante que o Brasil não explora no continente africano, porque eles são muito receptivos para o empresariado brasileiro, mas o empresariado brasileiro ou não está interessado ou ainda não conseguiu enxergar um campo de negócios forte no continente africano. E tem essas dificuldades de acomodação cultural”, disse.Adaptação transculturalHá cinco anos ela criou uma empresa que tem promovido eventos, recebido comitivas africanas no Brasil e trazido comitivas brasileiras para África, “não só para negócios, mas também para eventos culturais” e ligados à educação. Diz que no mestrado na UFRJ tenta levantar a discussão sobre adaptação transcultural e destaca que percebe uma resistência, às vezes, ou uma falta de cuidado em relação a questões raciais entre empresários brasileiros e empresários africanos. “Não se vê empresários africanos de uma maneira como se olha para os mesmos empresários quando você está lidando com eles no Brasil”, disse.O rígido protocolo da rainha Elizabeth II é mundialmente famoso e tinha que ser respeitado por todos os que conseguiam se aproximar para conseguir algo da monarca, falecida este mês. Da mesma forma, a maneira de se portar diante de empresários africanos é importante. Não por uma exigência banal, um capricho, mas por uma questão de respeito a uma cultura sobre a qual muita gente pouco se informa. E estar atento a detalhes pode abrir portas mais facilmente.Carolina lembra que o povo brasileiro é muito conhecido no mundo todo pela linguagem corporal (o toque, a fala que nem sempre é muito formal). Muitas vezes, são gestos que nem sempre são bem vistos, dependendo do país africano. “Evitar esses toques, muitos apertos de mão. Dependendo da população que você tá lidando, a sua linguagem precisa ser um pouco mais oficial”, diz, destacando que é preciso estar atento ao que “eles consideram respeito”.Na semana de celebração dos 200 anos da independência do Brasil, Carolina ajudou o embaixador Francisco Luz, que está à frente do consulado-geral do Brasil na cidade nigeriana de Lagos, a organizar a programação da série de eventos com foco em cultura, gastronomia e negócios, buscando reaproximar os dois países. O embaixador Ricardo Guerra de Araújo também participou do evento, que recebeu ainda uma delegação da FIRJAN. “Eu falei com um deles, na verdade, antes dele chegar, sobre essa importância da gente fazer uma adaptação da nossa cultura, que é uma cultura muito expressiva no continente africano. Nós somos muito bem recebidos. O Brasil carrega ainda um bom nome no continente africano, mas que na hora, às vezes, de fechar um negócio, pequenas barreiras são entraves”, frisou.A Nigéria tem a maior economia africana, com um PIB de mais de US$ 510 bilhões. O maior produtor de petróleo da África também se destaca nos setores de manufatura, financeiro, serviços, comunicações, tecnologia e entretenimento. Com Nollywood, a versão nigeriana de Hollywood, a indústria cinematográfica da Nigéria é uma das maiores do mundo. Estima-se que a população passe de 210 milhões de habitantes, como a do Brasil, com a diferença de que o país mais populoso da África, territorialmente (923,769 km2) seja bem menor que o Brasil (8,515,767 km2).Mas a Nigéria também é estigmatizada pelo terrorismo e o tráfico do drogas, com traficantes nigerianos atuando, inclusive, no Brasil. Desafios dos quais ela não se nega a falar e faz, inclusive, comparações entre os dois países para afastar qualquer possibilidade de se usar esses temas como desculpa para não conhecer e, quem sabe, investir na potência econômica africana.“Dependendo de onde você vai no Brasil é muito perigoso. Eu não recomendaria você passear em algumas regiões do Rio de Janeiro em determinados horários do dia, por exemplo. E a gente pode fazer uma leitura ampliada para Nigéria. Não recomendaria você ir a determinados lugares no norte do país, por exemplo, onde a gente tem a grande parte desses conflitos. Mas também não é todo norte”, afirmou.Sobre a presença do tráfico de drogas, ela disse que não se pode reduzir um país à atitude de indivíduos e que brasileiros também são julgados mundialmente por causa do tráfico de drogas. ”A gente precisa saber com quem a gente está falando”, frisa. Também para se evitar cair em golpes, ela exalta a importância de se aproximar de câmaras de comércio e canais oficiais das embaixadas brasileiras. “Problemas podem acontecer no meio do caminho, como em outros países, mas você já tem um filtro importante para lidar com essas pessoas”, afirmou.Embora trabalhe promovendo a conexão do Brasil com outros países também, percebe-se que Carolina é apaixonada pela Nigéria, especialmente. Aliás, paixão e Nigéria combinam perfeitamente na mesma frase em se tratando da vida dela, que conheceu o marido, e hoje sócio, nigeriano no lugar mais carioca que existe: a Lapa. “Dançando o ritmo mais latino-americano que existe, que é a salsa”, lembrou. Ele é empresário e produtor cultural. Depois de tê-lo conhecido, ela conta que começou a se aproximar também do Rei Ooni de Ifé, líder máximo da cultura iorubá no mundo, hoje assessorado pelo casal no Brasil.Educação antirracistaAntes de viajar para Lagos, de onde ela falou com a reportagem, a brasileira, que também é professora, esteve em Gana, onde participou da Conferência Mundial de Educação e Restituição e exaltou a importância de uma educação antirracista conectada ao continente africano. Lembrou ainda que no ano que vem a lei 10639/2003 completará 20 anos. Essa lei estabelece a obrigatoriedade da inclusão da matéria História e Cultura Afro-Brasileira no currículo oficial da rede de ensino no Brasil.“Não existe outra maneira da gente tentar mudar, tanto a nossa visão do que que é África quanto a visão do que é Brasil para os africanos, que não seja através da educação”, frisou. Ela ainda completou dizendo que a educação antirracista tem o papel, que enfatiza ser fundamental, de recuperar a relação com o continente. “A gente precisa entender quem eram esses reinos, quais eram as culturas, como era a forma de organização, o que a gente tem de produção intelectual, cultural e científica antes da escravidão, que é uma parte na história. Uma parte crítica que alterou toda a nossa relação com o mundo”, completou.Carolina espera uma reaproximação do Brasil com o continente africano no próximo governo, seja ele qual for. E diz que a população também deve cobrar das autoridades essa reaproximação. “Nós, população afro, somos maioria e a gente tem interesse específico em expandir essas relações”, frisou. Em suas redes sociais, recheadas de fotos e comentários sobre esta mais recente passagem por países africanos, a historiadora não se cansa de repetir que não existe Brasil sem África.
Entre tantas consequências, a guerra na Ucrânia comprometeu as exportações russas, o que acabou favorecendo países como a Nigéria, que agora é o segundo maior exportador de ureia para o Brasil. Até o ano passado essa posição era ocupada pela Rússia. “A gente está falando de quase 19% do volume (total) de ureia que o Brasil importou (este ano)”, detalhou Fátima Giovanna Coviello Ferreira, diretora de Economia e Estatística da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim). “Entre janeiro e abril, a Nigéria foi o principal fornecedor. Omã tomou essa posição a partir de maio”, acrescentou Francisco Luz, cônsul-geral do Brasil em Lagos, a maior cidade nigeriana.A diretora da Abiquim contou também que, comparando o volume importado pelo Brasil entre janeiro e agosto deste ano com o do mesmo período do ano passado, houve um aumento de 50%. “É um dado bastante expressivo”, disse.Em 2021, a maior economia africana era o quinto maior fornecedor deste fertilizante para o Brasil, respondendo por 10% de toda a ureia importada pela indústria brasileira. Ou seja: 2022 nem acabou e este volume já praticamente dobrou. O Catar atualmente está em terceiro lugar neste ranking e a Rússia em quarto.Dependência brasileiraNeste campo, o Brasil ainda é bastante dependente do cenário internacional, importando quase 80% de toda a ureia usada em seu mercado de fertilizantes. No ano passado, a maior parte do produto vinha da Rússia e do Catar. “Por conta de toda essa crise no início do ano, nós ficamos muito preocupados com essa dependência excessiva da importação de fertilizantes vinda da Rússia. Então, a Nigéria acaba suprindo e dando ao Brasil uma oportunidade de diversificar a pauta de países com os quais a gente tem essa correlação na importação de ureia”, afirmou a diretora da Abiquim.O Brasil já importava ureia da Nigéria há anos, mas em volumes razoavelmente baixos. O interesse pelo insumo nigeriano aumentou depois da invasão à Ucrânia. “Porque era o único país onde projetos estavam sendo implementados para produção desse importante insumo para agricultura. Em outubro, a fábrica de fertilizantes da Dangote aqui em Lekki, no estado de Lagos, começou a produzir e a primeira produção já foi para o Brasil”, disse o cônsul. Pouco depois do início da guerra, o ministro das Relações Exteriores, Carlos França, teve uma conversa Aliko Dangote, dono desta fábrica e o homem mais rico do continente africano, sobre a possibilidade de garantir um fornecimento sustentável de ureia para o Brasil. Empresários brasileiros compram hoje 60% da produção nigeriana de ureia, desta e outras três empresas que fornecem este produto no país.Ciente de que a produção brasileira não é suficiente, William Marchió, consultor em projetos de agropecuária sustentável, defende que é preciso investimentos que diminuam a dependência de outros países. “Como os insumos mais importantes para produção, por exemplo, de milho, de grãos de uma maneira em geral, e boa parte da produção pecuária também, dependem do uso de fertilizantes nitrogenados, a produção interna é fundamental”, justificou. Ele ainda lembra que o coronavírus deu um motivo a mais para se pensar nisso. “Ainda mais quando você tem um exemplo de dois anos de pandemia, que dificultaram o uso de contêineres, de navios, de fluxo de importação. Muitas operações ficaram extremamente vulneráveis a isso. Então, a produção interna de ureados é fundamental. Porém, ela não é suficiente hoje. A gente ainda vai depender de importação”, disse.Ureia: realmente necessária?Este é o principal produto para fertilizar a agricultura brasileira. “Fertiliza a terra para que ela tenha uma maior produtividade”, contou Fátima. A ureia vem da cadeia produtiva do petróleo, a partir do gás natural. “Por isso que essa questão da Rússia ficou prejudicada. A Rússia é um país que tem muito gás natural, ela é competitiva na produção de fertilizantes derivados de gás”, explicou.A ureia é o nitrogenado mais utilizado na agricultura brasileira, segundo especialistas. “Nitrogênio é um dos elementos mais importantes para as plantas utilizarem como fonte de produção de massa, vamos dizer assim. Hoje a gente utiliza a ureia para fazer o milho crescer, para o capim, para a maioria das pastagens. Você usando 40 Kg de nitrogênio por hectare aumenta um animal em cima desse hectare, em termos de produção de pastagem”, explicou William.Uso de ureia é nocivo? Mas o uso deste tipo de produto é polêmico, principalmente em um momento em que se fala muito sobre agricultura orgânica. William Marchió diz que ureia não é nociva à saúde de ninguém, “a não ser que a pessoa ingira aquilo puro”. Ele considera essa “ferramenta interessante” fundamental na produção agrícola.Ao mesmo tempo em que diz que “não dá para ter boas produtividades sem o uso de fertilizante base ureado”, William aponta alternativas. Segundo ele, “uma das ferramentas tecnológicas que temos para diminuir ou mitigar o uso de ureia seria a fixação biológica de nitrogênio, usar bactérias para fazer a função da fixação de nitrogênio. Nós temos nitrogênio no nosso ar que respiramos. Essas bactérias são capazes de extrair esse nitrogênio do ar e entregar às plantas. Só que é um processo mais lento, é um processo que exige muita qualidade de solo, muito trabalho de condicionamento biológico do solo para que isso evolua”, disse. A Embrapa e outras instituições no Brasil fazem isso “com propriedade” e difundem essa ideia, de acordo com o especialista. “Só que nem todos os produtores conseguem fazer isso de maneira sistemática. A gente tem produtores hoje que são menos dependentes da ureia do que outros”, completou.Ainda sobre a polêmica em torno do uso de fertilizantes e defensivos agrícolas, a diretora da Abiquim os compara aos remédios usados pela maioria das pessoas e diz que diante da crescente demanda por alimentos, o uso desses produtos é fundamental. “Os produtos químicos são essenciais para que a gente tenha uma quantidade maior de alimentos para alimentar a população e o fertilizante é um deles”, concluiu.Impulsionando a relação Brasil-NigériaUreia, petróleo cru, nafta e gás natural representam 98% da importação brasileira vinda da Nigéria atualmente. As expectativas de crescimento de volume negociado nos próximos meses trazem otimismo sobre o aumento do fluxo comercial entre os dois países, que já foi bem maior do que atualmente. Analisando dados desde 1997, o fluxo comercial entre Brasil e Nigéria atingiu o pico em 2013, quando chegou a US$ 10,523 bilhões. Com um declínio que começou em 2015, chegou ao menor nível em 2020: US$1,22 bilhões. “Esses números eram inflados por causa da presença da Petrobras aqui, exportando o óleo que produzia aqui para o Brasil”, esclareceu o cônsul-geral em Lagos. “Este ano a nossa estimativa é que fique entre US$ 2,4 e 2,5 bilhões. Vai ser o melhor desde 2015, mas ainda vai ser um quarto do patamar que a gente operou entre 2008 e 2014, cujo comércio mínimo anual neste período foi de US$ 5,8 bilhões”, analisou. No período mencionado, a Nigéria era o principal parceiro comercial do Brasil no continente africano. Hoje ocupa a terceira posição, atrás do Marrocos e da África do Sul.Nos últimos dias, a notícia sobre a possibilidade de uma companhia aérea começar a operar voos semanais entre Brasil e Nigéria também animou empresários dos dois lados do atlântico. Isso significa que “os empresários vão ter mais facilidade de ir ao Brasil, a possibilidade de ter carga aérea direta mais barata e o crescimento do turismo também, que afeta a balança de serviços”, ressalta Francisco Luz. Quem já operou voos ligando diretamente os dois países foi a Varig, que entre os anos 80 e 90 chegou a ter um escritório na Nigéria.Nigerianos “descobriram” o BrasilDurante a pandemia, nigerianos “descobriram” o Brasil. O cônsul-geral do Brasil em Lagos conta que durante o surto, nigerianos começaram a ver o Brasil como um atraente destino turístico e de compras. “Turistas que iam fazer compras em Londres, Dubai ou em Nova York agora começaram a fazer compras em São Paulo, no Rio de Janeiro”, contou. Com isso, o consulado já emitiu este ano mais vistos entre janeiro e julho do que em todo o ano passado. “(Foram) 957 vistos só para o Brasil no ano passado inteiro. Este ano, já foram 1532 vistos”, detalhou. Ele acredita que até o fim do ano o número de vistos emitidos seja maior que o dobro do emitido no ano passado.O turismo religioso também é um nicho a ser explorado, pois a cultura Iorubá no Brasil é forte. O cônsul acredita também que facilmente exista uma demanda para pelo menos 20 mil turistas nigerianos visitarem o Brasil todos os anos, o que justificaria quatro voos semanais, sem contar ainda os turistas brasileiros e a diáspora africana vivendo no maior país da América do Sul.O Brasil possui embaixada na capital nigeriana, Abuja, comandada pelo embaixador Ricardo Guerra de Araújo, para tratar dos assuntos políticos multilaterais, de Defesa, e todo o relacionamento de governo a governo, e ainda o consulado-geral em Lagos, que cuida basicamente de assuntos consulares, comércio, cultura e educação, e trabalha com uma equipe restrita de cinco pessoas, incluindo o cônsul. Número claramente insuficiente para a expectativa de aumento de pedidos de vistos, o que representa metade do trabalho do consulado.As estimativas de crescimento são em várias áreas. Nollywood, a versão nigeriana de Hollywood, que faz da Nigéria um dos principais países do mundo em termos de produção cinematográfica, está começando a se interessar por coproduções com o Brasil. Sem falar que o país mais populoso do continente africano é hoje a nação com mais startups (mais de 5 mil) em África.Os desafios, como violência e tráfico de drogas, existem, como no Brasil. “A situação agora é assim, mas o empresariado está pensando a partir de 2030”, disse o cônsul, lembrando que Lagos não sofre com o problema do terrorismo que preocupa algumas regiões do norte nigeriano. “Em se tratando de criminalidade aqui, nos últimos r
Neste ano, 3.332 brasileiros poderão participar da eleição presidencial estando em 17 países africanos. O número de cadastrados no continente é quase 22% maior que o de 2018. Na eleição passada, 2.734 eleitores se registraram, só que no segundo turno mais da metade (54,2%) nem sequer apareceu nos locais de votação africanos. O percentual de abstenção ficou acima de 50% em 11 desses países. Vinícius Assis, correspondente da RFI na África do SulEm 2018, Jair Bolsonaro recebeu no segundo turno 57,5% dos votos de brasileiros residentes na África. Os dados são do Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal (TRE-DF), responsável por zonas eleitorais no exterior, e de embaixadas e consulados do Brasil em países africanos. A maior parte do eleitorado brasileiro no continente está na África do Sul, uma das maiores economias da região.Adalton e Fernanda Barbosa são originários de Salvador (BA) e se mudaram para a Cidade do Cabo em 2019. Além de trabalharem como modelos, os dois abriram um negócio próprio e vendem comida brasileira. Neste ano votarão pela primeira vez no exterior.“É muito importante”, frisou Fernanda. Ela acredita que este seja o meio de alguém dar o melhor para a própria nação estando longe dela. O casal acabou justificando o voto em 2018 por estar viajando, mas não quis perder a chance de votar desta vez. “Não estou feliz com este atual governo e estou com uma expectativa grande de mudança", disse Adalton. "Meu voto é muito importante para contribuir para isso”, destacou.O casal está entre os 1.016 brasileiros que neste ano podem votar na África do Sul, número aproximadamente 19% superior ao pleito de quatro anos atrás. Na última eleição presidencial, 855 brasileiros se cadastraram para votar no país (605 em Pretória e 250 na Cidade do Cabo). No próximo dia 2 de outubro, haverá urnas eletrônicas em cada uma dessas duas cidades.A maioria dos brasileiros residentes na África do Sul vive em Pretória, Joanesburgo e Cidade do Cabo. Os perfis são diversos. Há estudantes, empresários, servidores públicos, pesquisadores, militares, missionários e acompanhantes de expatriados. No país africano que tem Cuba e China como dois dos principais aliados, alguns brasileiros se mostram mais próximos do socialismo, enquanto outros demonizam o comunismo.A empresária Ana Karato nasceu em Salesópolis, interior de São Paulo, e mora na África do Sul desde 2008. Ela votou no exterior pela primeira vez na eleição passada. Casada, mãe de três filhas, Karato conta que apenas a mais nova da casa, de 3 anos, não irá votar neste ano. A eleitora paulista estima que o presidente Jair Bolsonaro correspondeu em seu governo ao favoritismo que teve no continente na última eleição. Quando a reportagem pediu um exemplo de ação, inicialmente ela se referiu “a aviões fretados para que brasileiros fossem repatriados” durante a pandemia.Na verdade, em 2020, a embaixada brasileira no país contratou apenas um avião da South Africa Airways – e não vários – por cerca de R$ 2 milhões, para repatriar em torno de 250 brasileiros. Os passageiros foram dispensados de pagar diretamente os bilhetes.A empresária brasileira disse ainda que não tem motivos para reclamar sobre a atual relação bilateral entre Brasil e África do Sul. “Quem estiver no governo, independente de quem for, precisa colocar os interesses do país em primeiro lugar. Eu teria que fazer uma análise para ver o que que seria interessante para o Brasil“, afirmou. Ela diz achar “interessante que o Brasil não está mandando dinheiro para outro país”. “O importante é o Brasil se desenvolver. Então, para você se desenvolver, é como no meio dos negócios: você vende alguma coisa, a pessoa precisa comprar. Tem que haver uma troca, não pode ser somente de um lado”, disse.Governos brasileiro e sul-africano mais distantesOs 12 voos semanais que ligavam São Paulo e Joanesburgo até antes da pandemia já não existem mais, o que para Kika Ermel, operadora de turismo que vive na África do Sul há 15 anos, é um dos exemplos do crescente distanciamento entre os dois países. Aliás, ela disse que a relação Brasil-África do Sul parece estar indo ladeira abaixo.“Politicamente falando, vejo uma falta de conexão entre os dois países”, lamenta Ermel. “Cadê o BRICS?”, pergunta ela, indignada, referindo-se ao bloco do qual Brasil e África do Sul fazem parte, junto com Rússia, China e Índia. Especificamente sobre a falta dos voos diretos, ela lembra que o assunto não é apenas uma questão comercial. “Há que ter a vontade política”, frisou.Kika conta que antigamente se programava para viajar para o Brasil e votar, mas há anos desistiu de fazer isso e prefere justificar sua ausência das urnas. Com perfil assumidamente conservador, ela declara que se identifica mais com Bolsonaro do que com Lula, os dois favoritos nesta eleição brasileira, mas evita partidarizar suas respostas em se tratando de expectativas para o próximo governo. Ela acredita que a pressão de Bolsonaro para tentar nomear o bispo licenciado da igreja Universal Marcelo Crivella como embaixador do Brasil em Pretória talvez possa ter criado um certo mal-estar na relação entre os dois países. O que também tem deixado a empresária do ramo de turismo indignada é o fato da embaixada brasileira na capital sul-africana estar há meses sem um embaixador.Falta de embaixadores e queda de exportações no governo BolsonaroAtualmente, outras embaixadas africanas estão com o posto de embaixador brasileiro vago, como, por exemplo, Moçambique. Depois do constrangimento diplomático com Crivella, o governo da África do Sul aceitou a indicação do diplomata Benedicto Fonseca Filho, o primeiro embaixador negro do Brasil, que atualmente é cônsul-geral em Boston, nos Estados Unidos. Mas ele ainda precisa passar pela sabatina do Senado. “Certamente isso só acontecerá depois das eleições”, disse à reportagem uma fonte do Itamaraty.Na avaliação de Mario Schettino Valente, professor de Relações Internacionais do Ibmec da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a ausência de um embaixador em um país indica falta de prioridade. Em sua premiada tese de doutorado, defendida em 2020, Valente estudou os efeitos da política externa brasileira sobre o comércio exterior. “A tese comprova, de forma estatística, que a abertura de embaixada aumenta o fluxo comercial, principalmente as exportações”, afirmou.Atualmente, o que o Brasil mais envia para a África do Sul são óleos combustíveis de petróleo e carnes. E o que mais compra dos sul-africanos são minerais: prata, platina e alumínio representam mais da metade das importações brasileiras na pauta bilateral.Ainda de acordo com Valente, em 2019, o Brasil registrou o menor valor de participação nas exportações para a África do Sul em 20 anos. No primeiro ano do governo Bolsonaro, este percentual foi de 0,50%, maior apenas que o registrado em 1999 (0,49%). A constatação de recuo comercial é a mesma ao se analisar dados da África Subsariana. “Os piores anos da participação da África Subsaariana nas exportações brasileiras, desde 2000, foram em 2019 (1,628%) e 2018 (1,654%)”, informou. Ele acredita que a redução das atividades da Petrobras no continente tenha afetado este fluxo.Política externa minimizada na campanhaA política externa não parece ser uma prioridade para os candidatos à presidência em 2022, muito menos em se tratando da África. Dos 11 candidatos que disputam a corrida presidencial, três citaram o continente africano em seus planos de governo: Léo Péricles (UP), Lula (PT) e Sofia Manzano (PCB). Pablo Marçal até fez referência à região no seu programa de governo, mas o PROS retirou a candidatura dele.Enquanto países como Turquia, Estados Unidos, Rússia e China seguem buscando cada vez mais espaço no continente africano, o presidente do Instituto Brasil-África (IBRAF), João Bosco Monte, lembra que o Brasil vem se afastando desta região desde 2015, e esse distanciamento se intensificou no atual governo. Brasília não deu à África a atenção correspondente ao resultado das urnas no continente em 2018. Para o presidente do IBRAF, a imagem do Brasil no exterior não é a mesma de anos atrás e isso se dá, muito, pela forma com que o presidente Bolsonaro conduz sua política externa. Na África não é diferente.“O Brasil não está bem representado. O presidente Bolsonaro, durante os seus quase quatro anos de governo, sequer pensou e, de forma objetiva, materializou a relação próxima que o Brasil tinha com a África. Ele nunca viajou para nenhum dos países africanos. Isso é muito ruim, porque não demonstra uma aproximação e interesse do Brasil em conversar com a África”, analisou.Engana-se quem associa a África a um lugar que apenas precisa de ajuda humanitária. Especialistas consideram este “o continente do futuro”. Não se fala em produção de carros elétricos, por exemplo, sem colocar na discussão a República Democrática do Congo, um dos maiores produtores mundiais de coltan, ingrediente fundamental para a produção de baterias, inclusive de telefones celulares.Brasileiros esperam reaproximação entre Brasil e ÁfricaNo segundo turno, em 2018, o petista Fernando Haddad venceu a votação em seis países africanos: Cabo Verde, Costa do Marfim, Marrocos, Nigéria, Tanzânia e Quênia, para onde o missionário católico Pedro Mariano Pinheiro se mudou há sete meses. Ele também é de Salvador (BA) e vive a cerca de 170 km da capital queniana, Nairóbi.Pinheiro já está se programando para ir até a capital, a fim de votar no dia 2 de outubro. “Acho que cada voto é importante para fazer a diferença e tirar esse governo que está acabando com nosso país. Mesmo aqui eu preciso exercer meu dever de eleitor”, afirma. O missionário disse ainda que espera mais diálogo entre o Brasil e o continente africano no próximo governo.O desejo dele é o mesmo da professora universitária Ivanise Gomes. Há 8 anos, ela vive em Moçambique, que terá neste ano o segundo maior eleitorado brasileiro no continente africano: 673 inscritos, apenas dois eleitores a menos do que em 2018. A brasilei
Não foi da noite para o dia que esses dois conseguiram estrelar campanhas de marcas de luxo. Unidos pelo trabalho, os modelos Fernanda e Adalton Barbosa se conheceram gravando um comercial e estão juntos há 12 anos. Os dois são de Salvador, Bahia, e começaram a carreira cerca de 15 anos atrás. Ela ainda era adolescente, tinha 16, como muitas nessa profissão. Vinícius Assis, correspondente da RFI na África do SulJá ele começou a carreira com pouco mais de 20 anos de idade. O foco deles não são as passarelas, mas, sim, o mercado publicitário. Em 2013 ambos se mudaram para São Paulo, a mais cobiçada cidade brasileira para quem é desta área. Três anos depois, veio a ideia de dar um passo a mais na carreira: o mercado internacional. Foi, então, que fizeram contato com agências da África do Sul. Fernanda, que, por conta de uma campanha de shampoo na Argentina, já tinha feito a primeira viagem dela para fora do Brasil, acabou sendo convidada para uma temporada de três meses no país de Nelson Mandela, especificamente na Cidade do Cabo (ou Cape Town, em inglês).“Foi um desafio muito grande mesmo, eu lembro que eu não queria vir de jeito nenhum, viu. Eu fiquei com muito medo. O inglês foi o que mais me deixou apavorada. Vai ser muito difícil, eu estava com isso na mente, mas ainda bem que eu aceitei o desafio de vir. Passei os meus perrengues, que todo mundo que não fala inglês vai passar, mas valeu muito a pena mesmo”, lembra.Não saber se comunicar em inglês - um dos 12 idiomas oficiais da África do Sul - potencializou o nervosismo, mas não a impediu de encarar este desafio. Ela veio, mesmo sem dominar o inglês, para um país onde praticamente todo mundo fala mais de um idioma.“Absolutamente todo mundo que eu conheci aqui não só falava inglês, mas falava, tipo assim, quatro idiomas facilmente. Até o mendigo da rua”, destaca. Ela conta que isso a fez se sentir mal, por ser de uma potência gigantesca como o Brasil, onde se fala apenas português e não há muito incentivo para que se fale fluentemente outro idioma.Quando o contrato terminou, ela voltou para São Paulo. Aquele medo do início deu lugar ao sentimento de saudade.“Me bateu uma tristeza. Fiquei mal, doente e Adalto sem entender nada”, contou.Ainda em 2018, houve mais um convite, desta vez para passar seis meses na África do Sul. No fim daquele ano, Adalton acabou vindo também, mas a passeio. Era a primeira viagem internacional dele. Até que em 2019 os dois assinaram contrato de três anos com uma agência de modelos e se mudaram para a paradisíaca cidade que precisavam desbravar.“Foi paixão a primeira vista aqui nesse lugar maravilhoso”, disse Adalton, que entende do que Fernanda estava falando quando voltou para o Brasil. Mas a falta da fluência em inglês também foi um desafio para ele no início. Mas os dois voltaram para o Brasil, em abril de 2019, até que conseguiram, quatro meses depois, o visto de três anos para voltar para a África do Sul.Negros no mercado publicitário sul-africanoNo país estigmatizado pelo apartheid, regime de segregação racial que vigorou de 1948 até o início dos anos 90, e deixou marcas ainda perceptíveis, os negros representam cerca de 80% da população. Os brancos correspondem a quase 8%. Tem ainda os descendentes de indianos e os pardos, que somam os 12% restantes. É como oficialmente a população é dividida no censo sul-africano. O tom de pele de que vem de um país diverso, étnico-racialmente falando, como o Brasil é uma questão importante.“Isso é muito bem dividido e a moda é falada diretamente para cada tipo de grupo, coisa aqui no Brasil não é tão assim. Por exemplo: no Brasil é muito fácil uma menina mestiça, de pele bem clara, ocupar o espaço de uma menina negra. Não estou entrando em mérito aqui de quem é negro de quem não é”, frisa Fernanda, lembrando que apenas está comparando com a realidade do mercado na Cidade do Cabo, onde “quando eles querem uma modelo negra, eles querem uma modelo negra”.Ela lembra que brasileiras de pele mais clara e cabelos cacheados já vieram para a África do Sul e não trabalharam muito bem como achavam que trabalhariam. “Qual o grupo dessa menina aqui? Ela não vai encaixar quando o briefing pedir uma modelo negra. Em contrapartida, ela não vai encaixar tanto quando o briefing pedir uma modelo coloured (como os mestiços são chamados na África do Sul)”, esclareceu.Adalton enfatiza que, de um modo geral, o mercado para modelos negros é difícil.”A gente já sai perdendo para os brancos”, lembra. Mas ele, que usa dreads nos cabelos, diz que na África do Sul consegue trabalhar para marcas que vendem produtos mais elitizados, o que certamente não aconteceria se estivesse no Brasil. Mas mesmo assim eles enfrentam desafios por causa de suas características físicas. E por conta disso, Fernanda trabalha mais do que Adalton.“Eles dizem que o perfil de Fernanda é o perfil europeu. É a negra dos traços finos. Já eu, tive muita dificuldade de trabalhar no Brasil porque eu tenho lábios grandes e tal. Nesse tempo eu me cobrava muito. Sempre eu perdia para um modelo negro da pele mais clara com traços mais finos. Isso me deixava muito triste. Porém, aqui é bem legal para mim, porque eu me passo realmente como um africano”, disse.Adalton constantemente é comparado com os homens nigerianos e conta que o cabelo rastafári o faria ser visto apenas como “um negro descolado” no mercado da moda em São Paulo, deixando claro que a visão do negro endinheirado, dirigindo carros de luxo, praticamente inexiste no Brasil. “Aqui é diferente”, destaca o modelo.Fernanda faz questão de ressaltar a diferença entre modelos, de verdade, e profissionais do sexo que apenas se apresentam como modelos, mas acabam manchando a imagem de quem trabalha seriamente como eles. Essa confusão é “comum” por aqui também, onde - como no Brasil - existem os chamados books rosa e azul. A expressão é usada para definir o catálogo de mulheres e homens que fazem programas sexuais e são agenciados para isso. “Nesse mundo da moda, às vezes a pessoa pode se ludibriar facilmente com propostas. Pode acontecer, mas não dá para generalizar toda uma comunidade”, disse.É público e notório que nem tudo são flores neste meio. Em qualquer lugar do mundo, os cuidados são necessários para evitar que um sonho vire pesadelo. “Tem que prestar bastante atenção em qual agência você está, porque existem agências sérias e outras que não são serias”, alertou Adalton.Fernanda reforçou o alerta, lembrando que “muitas pessoas têm o sonho de ser modelo, entram em qualquer agência”, que pode ser “picareta”, onde os próprios “bookers” (agenciadores) as oferecerão para trabalhos que não tem a ver com o universo da moda e ainda afirmam que para elas serem modelos têm que passar por aquilo. “Procure uma agência séria. Procure ver modelos dessa agência. Vá no perfil da agência, veja os trabalhos que estão ali. Vá ao perfil do modelo, pergunte se a agência é séria de verdade”, recomendou. Os dois lembram que muitos podem cair em golpes quando acreditam que estão indo viajar em busca de oportunidades no mercado internacional da moda, mas acabam sendo vítimas de tráfico de pessoas.Pandemia e um plano BA África do Sul é o país que, até hoje, registrou o maior número de pessoas com COVID-19 do continente africano. E a pandemia atingiu em cheio o setor no qual esses brasileiros trabalham. O presidente Cyril Ramaphosa implementou um dos mais rigorosos confinamentos nacionais obrigatórios do mundo.Como modelos, os baianos recebem apenas se trabalham. Mas houve um momento em que os trabalhos pararam de aparecer. Antes dos casos surgirem por aqui, o coronavírus já estremecia a Europa. Por conta disso, os clientes europeus já tinham interrompido campanhas publicitárias com cenários sul-africanos. Foi quando um passatempo virou uma alternativa para garantir a renda do casal. Adalton começou a se dedicar à cozinha e experimentar receitas, como de bolos. Eles decidiram começar a vender a produção e criaram a Baianos in Cape Town. O foco é comida baiana, mas também vendem pão de queijo e feijoada. “Foi uma forma de não se amedrontar com a dificuldade que estava se iniciando”, lembra Fernanda.A embaixada e o consulado-geral do Brasil na África do Sul chegaram a bancar um avião inteiro para enviar brasileiros de volta no início da pandemia. Mas mesmo diante da incerteza sobre o futuro, o casal resolveu não voltar para São Paulo e, naquele momento, investir da venda de comida, o que os conecta diretamente com as suas famílias.A gastronomia brasileira é diversa, assim como a africana. Fernanda conta que chegou a chorar em um evento com um chef nigeriano quando provou um prato que a trouxe lembranças da infância.“Ele fez um tipo de sopa, que eu não sei dizer qual era o nome, mas que lembrou em cheio a comida que a minha avó fazia para mim. A gente tem o sarapatel, que é típico da Bahia, mas a forma com que minha avó fazia em casa era diferente. E era muito semelhante com a forma como ele fazia. Quando eu botei na boca, eu comecei a chorar”, disse. Aliás, os dois hoje se dizem fãs da comida nigeriana, exatamente por terem se identificado especialmente com os pratos e temperos deste país africano, mas a feijoada angolana, com verduras, também caiu no gosto do casal baiano. “Meu Deus, a minha avó fazia exatamente isso”, destacou Fernanda.Os trabalhos como modelos já voltaram, o que eles conciliam com a venda de comida brasileira, sem falar na produção de conteúdo para o canal que criaram na internet para falar da experiência deles na Cidade do Cabo. Dizem que, por enquanto, uma atividade não atrapalha a outra. Inicialmente a meta do casal era viver na África do Sul por três anos, cumprindo o contrato com a agência de modelos, que começou em 2019 e acaba no fim deste ano. Quando perguntados se já decidiram o que fazer quando o contrato acabar, os dois responderam juntos: vão continuar na África do Sul.Com a notícia de que a agência de modelos sul-africana quer renovar o contrato dos baianos por mais três anos, os dois j
O economista da Guiné-Bissau Carlos Lopes lança um livro escrito com o economista do Zimbábue George Kararach onde fala sobre percepções que considera deturpadas sobre a África, além de novas narrativas sobre o continente e desenvolvimento no século XXI, passando pela necessidade de se investir na industrialização da região e oportunidades. Lopes diz não ter dúvida de que, no campo econômico, um dos maiores desafios da África é a industrialização. Mas entre os esteriótipos que o ocidente construiu sobre o continente africano, o que mais o incomoda é o de que a África nada mais é do que um fornecedor de matérias-primas, sem transformação. “É exatamente o modelo colonial”, disse.“Nós no livro tentamos demonstrar que há possibilidades reais de transformação estrutural, que há países que já estão fazendo a coisa certa, mas, evidentemente, não são a maioria. E, portanto, é preciso muito mais empenho para que esta transformação tenha lugar”, explicou Lopes.Os dois autores vêm trabalhando sobre o tema desenvolvimento econômico e dividiram as tarefas para escrever um livro a quatro mãos. Lopes contou à RFI que Kararach focou mais nos estudos de casos, enquanto ele cuidou da complexidade da narrativa de interpretação de todo o processo de transformação estrutural.ColonizaçãoO economista guineense, que foi secretário executivo da Comissão Econômica das Nações Unidas para África, disse que há características estruturais, históricas e culturais comuns entre os países africanos, principalmente em se tratando de heranças do período colonial. “Apenas um país africano não foi colonizado completamente, a Etiópia, mas tem muitas características comuns com os outros”. Para ele, as diferenças que existem não impedem o debate sobre a África, em se tratando de representação global, em matéria de comércio. “Por isso os africanos têm que lutar, em termos internacionais, por um espaço de manobra, já que é mais fácil aparecerem no seu conjunto”, afirmou.A maior parte dos países desta região enfrenta problemas sistêmicos. “Quando olhamos para as diferenças, o que importa neste caso concreto abordado no livro é ver aqueles países que estão fazendo transformações estruturais e os que não estão fazendo”, disse.Quando se fala para quem não conhece a África, o economista reforça que é preciso enfatizar o tamanho geográfico do continente, o que normalmente as pessoas não consideram. “Muita gente não sabe que a China e a Índia são ‘pedacinhos’ em relação à massa territorial da África”, lembrou. A Rússia “corresponde, em massa territorial, a mais ou menos um terço da África”, lembra.“Temos essa visão cartográfica completamente errada, e também essa visão errada em termos históricos, culturais, políticos. No livro tentamos corrigir essas percepções negativas”, disse.Ausência no programa eleitoralO economista afirma que não o surpreende o fato de apenas três candidatos à presidência do Brasil terem citado o continente em seus programas de governo. Mas lembra que “a África vai ter um papel muito importante no futuro e muitos países já o reconhecem”, citando o exemplo da Turquia, que vem aumentando consideravelmente sua presença no continente africano. Lopes afirma que “o Brasil tem muito o que aprender”.Lopes finaliza a entrevista deixando um recado a quem vai governar o Brasil a partir de primeiro de janeiro de 2023. Para ele, o país “caiu outra vez na armadilha de exportação de commodities”, depois de um processo de industrialização classifica de "bastante bem sucedido". “Temos problemas comuns e podemos desenvolver capacidades também de respostas comuns a nível de negociações internacionais”, disse o especialista africano.
Formado em Direito, Bernardo Weaver foi seduzido pelo mercado financeiro logo no início da vida profissional. O sotaque não nega: ele é “da gema”. O primeiro emprego do carioca foi em um banco e ele acabou se tornando um financista. Fez MBA em Finanças nos Estados Unidos, onde mora há 20 anos. Vinícius Assis, correspondente da RFI na África do SulWeaver já trabalhou para o Banco Mundial, desenvolveu projetos em países europeus e latino-americanos, o que ele considera marcante na própria carreira. Também deixou seus conselhos pelo Oriente Médio. Há três anos fundou a própria empresa para prestar consultoria a bancos e governos, inclusive na África.O primeiro país do segundo continente mais populoso do planeta onde atuou foi Moçambique, em 2014. “Foi um lugar que me marcou muito. Mostra a grandeza do nosso povo, o quanto a gente fez e o quanto a gente ainda pode fazer enquanto brasileiro”, disse. Em geral, os moçambicanos se identificam muito com o Brasil. Costumam ser muito bem informados sobre os artistas e também a economia brasileira.No interior do Senegal, em uma cidade chamada Ziguinchor, ele diz que conheceu também pessoas vindas de Guiné-Bissau, outro dos seis países africanos de língua portuguesa. “É uma região linda”, destacou, apesar de se lembrar dos desafios enfrentados pelos locais, como conflitos internos. “Acho que está mais calmo. Vale a pena visitar, sim”, ressaltou.O trabalho em Moçambique foi até 2019. “Eu estava ajudando governos municipais a aumentarem suas arrecadações, a diminuir a pressão fiscal que eles sofrem”, explicou. Dois grandes desafios de cidades africanas são moradias irregulares e a inadimplência de impostos, sem falar na grande dependência que municípios têm de repasses de verbas nacionais. “É melhor que as cidades tenham suas próprias fontes de receita e, com isso, os governos nacionais terão mais capacidade de pagar suas dívidas, investir em infraestrutura e melhorar o desenvolvimento econômico e a produtividade do país”, disse.A Mauritânia foi outra nação onde ele trabalhou, também no noroeste africano, como o Senegal, país, aliás, que o brasileiro diz ser o mais avançado dos dois. “A Mauritânia é um país muito menos desenvolvido, país muçulmano muito radical. Mulheres usam burca, você não pode tocar nelas”, contou, comparando este país que fica na região do deserto do Saara e também é banhado pelo oceano Atlântico com a Turquia, onde “mulheres usam calça jeans e andam sem véu no cabelo”.Infraestrutura sanitária deficiente requer investimentosNo Senegal e na Mauritânia, ele analisou os sistemas de gestão de coleta de lixo para encontrar meios de fazer este tipo de trabalho com menos impacto danoso no meio ambiente. O objetivo também era aumentar a extensão da coleta e diminuir a insalubridade urbana, com um sistema de coleta de lixo eficiente. “O deles não era. Havia muita sujeira e lixão a céu aberto, o que gera doenças e cria um aspecto visual e econômico depreciado para a cidade”, disse.Ao detalhar o trabalho, o brasileiro contou que “fazia o modelo financeiro, via quanto ia custar os caminhões, fez um plano dentro das cidades para ter pontos de transferência para o lixo poder chegar ao aterro sanitário e ao centro de reciclagem para que pudesse ser disposto de forma ecologicamente correta”.Mercado de ações na EtiópiaO último desafio está sendo criar um mercado de ações na Etiópia, um país de 120 milhões de habitantes sem praça financeira. O carioca vê a Etiópia como "um país que está meio perdido no mundo, em termos de relações políticas internacionais”. Neste aspecto, Weaver destaca uma possibilidade que o Brasil está perdendo, já que nos últimos anos veio se distanciando do continente africano.“O Brasil, que é um país que está isolado atualmente, podia chegar ali, botar um pouquinho de dinheiro e ia conseguir tudo. É o que os chineses estão conseguindo. E a gente tem uma afinidade cultural com eles um milhão de vezes maior. O pessoal da Etiópia parece 80% da população brasileira fisicamente”, disse.Ele afirma que poderia passar horas dando argumentos favoráveis a quem quer que seja sobre as possibilidades de investimentos no continente africano e na Etiópia, apesar do país enfrentar uma guerra civil, no norte, e estar na região chamada de o chifre da África, que sofre com a pior seca em 40 anos. “É quase impossível nāo ter (alguma oportunidade). Sempre tem alguma coisa”, frisou.“O mercado de ações da Etiópia certamente vai ter uma volatilidade muito grande no início, mas tem muitas empresas boas lá: a estatal de aviação é boa, a empresa de telecomunicações é boa, várias outras que estarão na bolsa de valores. É uma oportunidade tremenda para o Brasil ter um pé na África”, aposta.O Banco Central etíope quer agora a fusão de bancos locais para que possam enfrentar a concorrência do mercado internacional. “Se a Etiópia abre o mercado financeiro com bancos fracos, os bancos europeus e os dos países mais ricos da África vão entrar e destruir tudo, eles têm que se defender, com o fortalecimento do setor bancário. Foi o que eu falei para os diretores do Banco Central. Não sei se eles acataram ou tiveram a mesma ideia”, falou.De um modo geral, Weaver ressaltou que a “África é um lugar com potencial absurdo”, garantindo que a probabilidade de se conseguir bons projetos nesta região é grande. Ele repete que a China está aproveitando muitas oportunidades no continente. “O Brasil devia dar uma olhada lá para ver se tem alguma coisa que serve para o país”, salientou. Ele reforça que não diz isso com base em opinião, mas respaldado matematicamente. “É técnico! Muito difícil uma pessoa me provar que estou errado. Obviamente tem algo para fazer ali. Tem que analisar e ver se te interessa ou não”, disse.Assim como no continente americano, o brasileiro destaca que os países africanos também são diferentes. Rebate as críticas dos que olham para África como uma região hostil e violenta. “Para quem cresceu no Rio de Janeiro e em São Paulo, não existe ter medo de ir para o continente africano por causa da violência. No Brasil alguém te mata para roubar seu celular”, justifica.Sem exploração colonialEle reconhece que “obviamente há crime”, mas diz que se sente totalmente seguro nas capitais dos países por onde passou. Por fim, Weaver defende que a elite intelectual do Brasil precisa se aproximar do continente africano. Ao falar em possibilidades de investimento, explica que isso não precisa necessariamente seguir um modelo colonial de exploração.“Se o Brasil conseguir investir, criar fábricas na África, a produtividade deles (países africanos) cresce muito mais. Obviamente o brasileiro que investir tem uma probabilidade alta de ganhar dinheiro, mas isso vai ajudar a desenvolver muito a África. Ao contrário dos países que tiram muita vantagem, é possível fazer algo mais equilibrado, adotar uma posição mais de parceria, o que sempre foi o norte do meu trabalho na África”, disse.Para o consultor, viajar para o continente a passeio é o primeiro passo para quem quer investir em um país africano. “Você vai para a África, experimenta uma cultura nova, lugar lindíssimo, um povo maravilhoso e gente de tudo quanto é tipo. Pega um avião e vai fazer turismo”, recomenda.
A política externa não está no centro das atenções dos presidenciáveis, muito menos o continente africano, na análise do presidente e fundador do Instituto Brasil-África (IBRAF), João Bosco Monte. Para ele, poucas linhas dos planos de governo são destinadas a explicar como o Brasil vai se comportar no cenário internacional e isso fica mais claro ainda em se tratando de África. “Há pouca definição de como o Brasil vai conversar com um continente tão grande, com 54 países”, destacou. Vinícius Assis, correspondente da RFI na EtiópiaDos candidatos que se lembraram do território africano em seus programas de governo, um é negro: Léo Péricles, do UP. Os outros são brancos: Lula, do PT e Sofia Manzano, do PCB. Antes do PROS anunciar a retirada da candidatura de Pablo Marçal e o apoio a Lula, Marçal também era um dos que citaram a África no programa de governo.“Acho que é pouco”, lamentou o professor de Política Internacional e Comparada na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Dawisson Belém Lopes, diante da quantidade de candidatos que se lembraram de governos africanos em seus programas.Ele ressaltou o grande potencial do segundo continente mais populoso do planeta ao falar que, além de ter um passado em comum, Brasil e África deveriam ter um futuro em comum como prioridade.“Uma região com 1,2 bilhão de seres humanos, com um crescimento econômico acima da média global, com potencialidades evidentes em qualquer esfera das relações internacionais, com um plano arrojado de desenvolvimento, que é encabeçado pela União Africana, a Agenda 2063, um continente que tem despertado um interesse e a atenção das grandes potências do mundo deveria receber do Brasil também um tratamento prioritário”, avaliou. “A África não é só dívida histórica, não é só um passado em comum. África é presente e África é, sobretudo, o futuro.” África nos planos de governoAo tratar do assunto, Lula (PT) fala em defesa da soberania brasileira e da recuperação de uma “política externa ativa e altiva” que alçou o Brasil à condição de protagonista global no passado. “Reconstruiremos a cooperação internacional Sul-Sul com América Latina e África. Defendemos a ampliação da participação do Brasil nos assentos dos organismos multilaterais”, diz o documento, que ainda fala na “implementação de um amplo conjunto de políticas públicas de promoção da igualdade racial e de combate ao racismo estrutural”.O candidato Léo Péricles (UP) se mostra anti-imperialista e deixa claro no plano de governo dele que pretende “aprofundar as relações multilaterais entre os países vizinhos na América Latina e retornar aos esforços diplomáticos contra hegemônicos, com os parceiros estratégicos africanos e asiáticos. Voltar a exportar influência e excelência técnica nas áreas em que o Brasil é referência e intensificar o intercâmbio com as experiências internacionais de transformação social, sobretudo para a superação do subdesenvolvimento”.Já Pablo Marçal (PROS) resume seus planos para a pasta de Relações Internacionais em dois tópicos: blocos econômicos com países prósperos e influentes nas decisões globais e um bloco Brasil-África. “Assumimos o compromisso de aproximar as relações políticas e econômicas com o continente africano, por meio de cooperação comercial e empresarial, visando o desenvolvimento mútuo através do bloco econômico Brasil-África, que buscará o trabalho direto com as 54 nações africanas”, traz o documento.A candidata Sofia Manzano (PCB), por sua vez, se compromete a “estabelecer relações diplomáticas e econômicas com os países em África levando em conta as vantagens mútuas, trabalhando para quebrar a relação subimperialista da burguesia brasileira com esses países. Pautar a criação de uma organização de Países Exportadores de Energia, Petróleo e Riquezas Minerais em âmbito latino-americano e africano, para proteger os interesses dessas regiões frente às investidas imperialistas”.Os programas de Jair Bolsonaro (PL) e Simone Tebet (MDB) até citam o BRICS, bloco do qual a África do Sul faz parte, junto com Brasil, Rússia, Índia e China, mas não se referem em momento algum ao continente africano especificamente. Todas as candidaturas ainda aguardam validação.Enquanto potências globais, como Rússia, Estados Unidos e China, buscam cada vez mais parceiros africanos, de olho no futuro, o professor Dawisson Belém Lopes, que também é pesquisador visitante na Universidade de Oxford, diz ter a impressão de que o Brasil está ficando para trás ao menosprezar o continente africano. “Acho que transcende nossos laços históricos, culturais e identitários com a África. Todo candidato à presidência da República Federativa do Brasil deveria, por óbvio, enfatizar a África quando tratar de política externa. Acho que é o mínimo”, destacou.O advogado sul-africano Emile Myburgh, que defende interesses de quase todas as grandes empresas brasileiras na África do Sul e também de empresários africanos no Brasil, disse que o fato de dois terços dos candidatos à presidência ignorarem o continente não o surpreende.“Dos dois lados há muita ignorância sobre o outro. Tem muita falta de conhecimento sobre nossos continentes. E os candidatos apenas refletem quem os apoiam. ¨Por isso tem uma minoria que fala sobre África”, disse.Racismo estrutural e institucionalPara a doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo Paola Prandini, que atualmente mora em Maputo, capital de Moçambique, o fato diz muito sobre o racismo estrutural e institucional ao qual o povo brasileiro está submetido.“Infelizmente, essa estrutura desigual e extremamente injusta a que nós temos vivido historicamente, desde o processo de colonização portuguesa, no caso do Brasil, tem mostrado o quanto não se conhece do continente africano, mesmo sendo este o berço da humanidade. E sem África não existiria Brasil, uma vez que falamos de um país em que 56% da população se autodeclara negra e, portanto, afrodescendente”, afirma.Paola Prandini disse ainda que essa postura da maioria dos candidatos à presidência no Brasil “também demonstra o silenciamento proposital que acontece em relação a essa estrutura verticalizada e muito condicionada pela branquitude brasileira, o que também faz com que haja essa falta de interesse de perceber a obrigatoriedade e a emergência de se tratar de um continente que tem sido considerado globalmente como o continente mais importante do mundo nos próximos anos”.Brasil vem se afastando da ÁfricaNos últimos anos, o Brasil se distanciou do continente africano – um recuo brasileiro que começou antes do atual governo, de acordo com o presidente do IBRAF, João Bosco Monte. "O Brasil, desde o governo da presidente Dilma, depois passando pelo presidente Temer e, agora, com o presidente Bolsonaro, não olhou com a atenção devida para o continente africano. As relações se esfriaram”, disse.Para ele, isso ocorreu por decisão direta dos governantes. “Não houve uma intenção direta de fazer com que os movimentos de um lado e outro do atlântico se potencializassem. Ao contrário”, disse. Bosco lembra que a Dilma Rousseff teve poucas experiências com o continente africano e isso se repetiu com Michel Temer.“Não houve uma deliberada intenção de priorizar, de viabilizar as relações diretas”, reforçou, antes de destacar que a relação do Brasil com a região piorou com o presidente Bolsonaro. “Não houve uma única intenção de ter uma conversa mais direta com o continente africano. O presidente Bolsonaro nunca viajou para a África. Isso é muito ruim nos seus quase quatro anos de governo”, lamentou.Desde 2012, anualmente o IBRAF organiza o Fórum Brasil-África, com o objetivo de unir interesses em comum dos dois lados do oceano atlântico entre empresários, organizações, pesquisadores e, claro, governos.“Haveria de existir uma intenção de conversar com economias grandes, como Nigéria, África do Sul, Quênia, Marrocos, República Democrática do Congo, que têm, certamente, muito a contribuir com a agenda comercial do Brasil. Infelizmente, isso foi relegado e o ruim é que alguns países ocuparam, de uma forma muito direta, espaços que o Brasil já tinha estabelecido, como parcerias com alguns países do continente africano”, disse João Bosco Monte.Recados ao próximo governoAlém de advogado, Emile Myburgh também é piloto de avião e acredita que o próximo governo, independentemente de quem vencer, deve se envolver na retomada de voos diretos entre o Brasil e a África do Sul. Dos 12 voos operados por duas companhias aéreas que semanalmente ligavam São Paulo e Joanesburgo até 2020, suspensos por conta da pandemia, nenhum voltou a operar. Incentivar o restabelecimento desses voos por uma ou mais companhias aéreas deve ser um objetivo do próximo governo, na opinião dele.Atualmente, passageiros que viajam do Brasil para a África do Sul, e vice-versa, a negócios ou a passeio, precisam fazer escalas em locais como Dubai, Doha, Adis Abeba, Turquia e Luanda, deixando a viagem mais longa, cansativa e cara.“Isso não é bom para a aproximação dos dois países e, visto a falta de conhecimento entre os dois países, eu não vejo esses voos sendo retomados sem um incentivo político”, disse.Em seguida, o advogado recomenda que o próximo a ocupar o Planalto se lembre da primeira década deste século, quando as maiores empresas e bancos sul-africanos se estabeleceram no Brasil e as maiores empresas brasileiras vieram para África. “Isso pode ser retomado e repetido”, lembrou.“Aquela relação que se deu naquele momento foi muito importante para que interesses africanos pudessem ser também interesses brasileiros”, destacou João Bosco Monte.Na opinião da doutora Paola Prandini, investir em conhecimento sobre países africanos deve ser prioridade. Ela destaca a necessidade de se fazer cumprir a lei federal 10.639, de 2003, que instituiu que todas as escolas brasileiras devem ter conteúdos relativos à história e cultura africana e afro-brasileira como parte dos currículos. “Infelizmente, quase 20 anos após a aprovação dessa lei, nós ainda sofremos
Há seis anos o brasileiro Flávio Saudade vive na cidade congolesa de Goma, onde ensina capoeira a crianças salvas de milícias armadas. Recentemente, ele acompanhou os protestos ruas contra a Monusco, a maior missão de paz que a ONU realiza atualmente. Vinícius Assis, correspondente da RFI no continente africanoAs manifestações na República Democrática do Congo, aterrorizado por dezenas de grupos armados, já deixaram mais de 30 mortos e 170 feridos. A mobilização deixa claro o descontentamento de moradores com a missão da ONU que, para parte da população, não tem garantido a tão desejada paz. O general brasileiro Marcos de Sá Affonso da Costa é quem comanda a tropa da Monusco, de cerca de 15 mil militares de diferentes partes do mundo.Nascido em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro, Flávio Saudade já morou no Haiti, que também recebeu uma missão de paz da ONU com o objetivo de colocar ordem no país, depois de um conturbado período e a deposição do presidente Jean-Bertrand Aristide. O capoeirista ouve hoje o clamor de congoleses pedindo a saída da Monusco e lembra do que aconteceu no Haiti.“Quando existia toda aquela manifestação no Haiti, a gente ouvia muitos haitianos amigos nossos falando que quando a missão deixasse o país, tudo iria ficar pior do que em 2004 [ano do golpe de Estado]. E eu vejo hoje que o Haiti se afundou realmente numa situação ainda pior, que acabou levando várias pessoas queridas”, diz. Flávio Saudade lamenta ao falar dos jovens haitianos a quem ensinava capoeira e que morreram no conflito. Ele teme que a mesma situação se repita na República Democrática do Congo.O capoeirista fala também de recentes ataques à casas de integrantes e bases da Monusco. “A gente soube que foi uma ação articulada. Eles tinham equipamentos. Então não foi uma coisa somente do povo”, disse.O brasileiro acredita que, assim como na nação caribenha, manifestantes congoleses podem também estar sendo influenciados politicamente: “Eu, particularmente, acredito que houve, sim, uma uma influência de forças políticas, mas eu não falo políticas partidárias. E forças exteriores que influenciaram grupos de pessoas para realizar esses ataques”, suspeita.A capoeira o levou a viver nesses dois países, que ele considera "ricos em calor humano", porém com populações ameaçadas pelas realidades enfrentadas, como em várias regiões do Brasil. Flávio faz paralelos entre os três países e vê semelhanças com a própria infância.A capoeira na infância precáriaFlávio é o segundo mais velho de quatro filhos. Perdeu o pai aos 8 anos, fato que o marcou psicologicamente e desestruturou a família, inclusive financeiramente. A casa da avó passou a ser o novo endereço. Faltava dinheiro, mas não o apoio afetuoso de parentes e vizinhos e fé. “Eu me lembro da minha avó fazendo o sinal da cruz na boca e dizendo: não tem o que comer, então, a gente tem que agradecer e aguardar que amanhã Deus dará”, lembrou.Foi na infância que conheceu a capoeira, através de um tio, de quem Flávio fala com muita admiração. As mesmas lições que aprendeu com ele o brasileiro usa para se enturmar nas áreas periféricas onde atua hoje.Os primeiros movimentos da capoeira lhes foram ensinados para que pudesse se defender, assim como faziam africanos escravizados. As lições de combate foram aperfeiçoadas com estudo e dedicação ao longo do tempo, o que o permitiu levantar hoje a bandeira da capoeira social como um instrumento transformador.Mestiço, o brasileiro revelou ter descendência italiana e espanhola, mas a melanina na pele não esconde as raízes africanas. Flávio contou como teve as primeiras percepções sobre cidadania e negritude.“A capoeira me deu essa noção, do reencontro com minha raiz, com a África, com meus ancestrais. Ela me trouxe essa questão identitária que me permitiu me posicionar e, sobretudo, conhecer a minha história, a história dos meus ancestrais e, a partir dai, a cidadania, que deve nascer do conhecimento das nossas origens”, explica.Saudade que virou sobrenomeCom o falecimento do pai e a situação financeira da família cada vez mais difícil, a mãe de Flávio não conseguiu mais pagar a escola particular que ele frequentava. Como o desligamento da escola não foi oficializado, as cobranças continuaram. Sem quitar a dívida, foi impossível conseguir o documento necessário para fazer a transferência para outro colégio. Assim, Flávio cresceu com saudades da escola, mas não de braços cruzados.Aos 21 anos, ganhando a vida como ajudante de pedreiro, conseguiu terminar o então "primeiro grau" (hoje ensino fundamental) graças ao extinto Telecurso 2000, quando teve contato com um computador pela primeira vez. Projetos sociais transformaram a vida dele, que conseguiu entrar para uma universidade particular e estudar Publicidade.Adulto, ele passou a trabalhar em uma ONG no Rio de Janeiro. A atividade na capital o distanciou de muitas pessoas queridas em São Gonçalo, inclusive da turma da capoeira. Nos reencontros com algumas dessas pessoas ele sempre expressava sua saudade, ao lembrar dos encontros que já não eram tão frequentes. Foi desta forma que o sentimento virou seu sobrenome.Hoje Flávio é coordenador de uma programa da ONG Gingando pela Paz, criada em 2005 e que o levou a ser convidado para ir ao Haiti, em 2008. Por conta disso, abandonou a faculdade. “A missão no Haiti seria para um ano, mas fiquei lá oito anos”, lembra.A mudança para o CongoEm 2016, Flávio se mudou para o Congo, mesmo ainda sem dominar o francês, idioma oficial na ex-colônia da Bélgica. Hoje ele vê semelhanças entre as crianças do Congo, as do Haiti e as brasileiras, de São Gonçalo."São crianças em situação de rua, que foram mobilizadas para grupos armados e estão em processo de desmobilização”, diz. Segundo ele, a maioria é menino, mas há também meninas, sobreviventes de violência sexual. “Os tipos de violência, de problemas que essas crianças carregam são enormes, mas são todas crianças”, ressalta.“São crianças que são 'ricas', que tem todo potencial para realizar muitas coisas boas na vida. Porém, são crianças que estão em um contexto de ameaças muito grande como eu estava em São Gonçalo, sobretudo a violência armada”, compara, lembrando das memórias da infância.A dificuldade de acesso à alimentação das crianças congolesas o remetem à vida na região metropolitana do Rio de Janeiro. Mas o brasileiro também se lembra de uma época em que se podia brincar na rua até tarde da noite, o que não é mais possível em várias regiões dos países onde ele morou. Se de um lado há o tráfico de drogas, que - como em áreas do Rio de Janeiro - se apresenta como uma arriscada opção para jovens ganharem muito dinheiro ilegalmente, do outro estão as milícias armadas, que não costumam dar às crianças o direito de escolha.“O agravante é que elas são ameaçadas pelo sequestro para integrar grupos armados. Na minha época não havia esse perigo, sendo forçado. O tráfico de drogas sempre esteve lá e entra quem quer, como até hoje é. Mas aqui existe essa problemática do recrutamento forçado de crianças para ingressar em grupos armados”, contou.Capoeira como instrumento transformadorEle concorda que a capoeira, apesar de reconhecida pela Unesco como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, não é muito difundida no Brasil, onde nasceu. Mas, no exterior, a manifestação afro-brasileira vem se popularizando e, graças a trabalhos como o desenvolvido por ele, transforma realidades.O brasileiro considera a capoeira uma “tecnologia social que permite a reconstrução dos laços de confiança e afetivos”. Vínculos que, no caso dessas crianças, muitas vezes foram cortados com o recrutamento dos grupos armados.“A capoeira nos permite ter a consciência de coletividade. Muito mais do que uma prática esportiva, uma modalidade marcial, na origem dela tem a coletividade, cooperação, tudo o que é necessário para que a comunidade consiga se manter, se reestabelecer enfrentar seus desafios”, explicou.A imagem positiva do Brasil entre os congoleses o permite circular em áreas onde estrangeiros normalmente não vão. “Acho que o Brasil carrega essa responsabilidade do país que agrega pessoas, que recebe, acolhe. Infelizmente hoje nós vemos o Brasil transmitindo uma imagem de violência, armamento, intolerância com os mais humildes, os mais vulnerabilizados”, lamenta ao se referir ao assassinato do congolês Moïse Kabagambe, de 24 anos, no Rio de Janeiro. “Para os congoleses, isso é difícil de entender, como um país que eles olham como um local de paz e segurança, acolhedor, pode tratar um irmão dessa forma”, contou.A violência armada, de certa forma, não permite ao brasileiro viajar mais pelo país famoso pelas belezas naturais, onde fica a segunda maior floresta tropical do planeta, atrás apenas da Amazônia. Mas o capoeirista sabe exatamente o que responder quando alguém pergunta, sem entender, o que ele ainda faz no Congo.“Muito embora existam tantos problemas aqui no Congo, eu estou aprendendo, na verdade, e eu estou ganhando, crescendo enquanto ser humano, pessoa e profissional. Acredito que a África tem muito a ensinar, sobretudo a brasileiros e toda a diáspora que acabou se afastando de coisas simples”, conclui.
A dança já levou Fábio Reis a 20 países. O gingado certamente está no DNA deste filho de baianos que nasceu em São Paulo. Apesar de ter crescido ouvindo forró, principalmente nas férias que passava com a família na Bahia, começou a dançar mesmo aos 19 anos. Vinícius Assis, correspondente da RFI “Eu não sabia nada. Tinha até um pouco de preconceito com o forró por causa da minha família que escutava forró o dia inteiro. Eu gostava mais de ‘putz putz’”, contou ele, ao lembrar que era com música eletrônica que se divertia. Só que foi “arrastado” pela namorada da época para o popular ritmo brasileiro.“Fui dançar com ela, não consegui, pisei no pé dela. Ela ficou meio brava e eu falei: Vou aprender a dançar esse negócio”, lembrou. Depois disso, começou a fazer aulas e se encantou, inclusive pelos laços com a família. “Desde quando eu estava na barriga da minha mãe, nas festinhas, tudo era forró”, disse, destacando que a família do pai gosta mais de dançar do que a da mãe.Discípulo do famoso coreógrafo e professor Jaime Arôxa, Fábio diz que foi formado “pela vida” para fazer o que faz. “Estudei a dança com foco no comportamento humano. Um estudo autodidata que eu faço até hoje”, esclareceu. Ele também trabalhou como DJ, o que o permitiu conhecer muitas pessoas na área de eventos.Em 2015, fechou a escola que tinha aberto no Brasil para começar a primeira turnê na Europa. Chegou a viver na França, na cidade de Lyon, e também trabalhou com o que mais gosta morando na Alemanha, onde conheceu a esposa, Melanie Axiotis. O dançarino contou que o forró é muito popular em alguns países europeus e que hoje em dia há dezenas de festivais naquele continente. “Quase todo fim de semana tem um festival de forró em algum lugar”, disse. Foi em um desses festivais, em Berlim, que ele e Melanie se conheceram, em 2018.Fábio nunca havia visitado um país do continente africano, que tanto influenciou a música e a dança no Brasil.Origens do forróO brasileiro conta que um terço do forró vem da África. “O forró é a mistura de três culturas muito importantes: africana, indígena e europeia”, explicou. De acordo com o professor, o movimento dos pés quando se dança forró é uma influência indígena. Já o balanço do quadril é o “toque” da África. E o abraço vem de danças europeias.Inspiração no molejo e, acredita-se, no nome também. Ele conta que uma das hipóteses sobre a origem da palavra forró é a expressão “forrobodó, que vem de uma palavra africana que significa bagunça, festa. E aí tiraram o bodó e deixaram só o forró”.A esposa do brasileiro - uma alemã que também é forrozeira - acabou recebendo uma proposta para trabalhar em Ruanda. E a oportunidade veio em um momento em que o Fábio vivia uma ótima fase profissional na Alemanha. “Eu estava no auge, com mais de cem alunos, dando aulas em três lugares diferentes, tudo cheio, festas umas duas vezes por mês”, lembrou.Mas, como bom companheiro, Fábio refez seus planos e se mudou com ela para o país do leste africano. “Para mim Ruanda era Luanda, capital de Angola”, conta e lembra que até hoje quando diz onde vive alguns amigos confundem o país com a capital angolana.O que também incentivou o brasileiro a vir foi a possibilidade de ter contato direto com quem entende mesmo de dança no continente africano. “Isso foi o que a África deu para a gente: dança, agito, festa”, destacou.Infelizmente, nem toda a história do continente é alegre. Ruanda é um país ainda marcado pelo genocídio contra os Tutsi, em 1994, que matou quase um milhão de pessoas. “Tem me chamado atenção a maneira de eles serem respeitosos depois de tudo o que eles passaram. Eles me passam uma tranquilidade”, declarou sobre o convívio diário entre os ruandeses, independentemente da etnia.O casal vive há dois anos na capital, Kigali. O brasileiro fez uma comparação entre o comportamento de parte da população de Ruanda e a postura de quem vive na Alemanha, nação europeia estigmatizada pelo nazismo. É como se algumas pessoas se comportassem bem diante das outras, mas guardando ainda escondido no peito algo mau resolvido.“Tem uma tensão ali, e eu percebi essa tensão também quando eu morei na Alemanha. É um povo que tem uma preocupação, no meu ver, por conta de como eu fui criado, com o respeito. É demais: muita educação, muito respeito. Tem que tomar cuidado com isso, como vai falar, como vai chegar”, disse.Resiliência é uma palavra que combina com Fábio e, na opinião dele, com o povo de Ruanda também. Eles estão na luta ainda e eles sabem que é um passo de cada vez. Eles têm essa percepção de que não é de um dia para o outro (que se supera algo como o genocídio). E 20 anos passam muito rápido. Olha como (o país) está agora.Aos poucos, ele vai conquistando o próprio espaço. O brasileiro já começou a dar aulas a pequenos grupos. Muitos dos alunos, até agora, foram europeus. Por conta da pandemia, o professor teve que se reinventar e desenvolver um método online para continuar dando aulas. Nem é preciso, necessariamente, uma segunda pessoa para o aprendizado virtual. Móveis e objetos como travesseiros podem ser usados nas aulas.“Ensinar forró online eu descobri que é trazer para as pessoas o que elas já fazem no dia a dia delas, porque dançar é você mover o corpo em cima de uma música, um ritmo, uma melodia”, resumiu.Enquanto no forró normalmente a mulher segue o homem, na vida deste casal foi o Fábio quem decidiu seguir a esposa quando a alemã recebeu a proposta para trabalhar em Ruanda. Decisão que ele não se arrepende de ter tomado. “Quando você começa a ver a felicidade do seu parceiro ou da sua parceira, você fala: como faço o meu projeto estar junto com o dela (ou dele)?”, disse.Fábio deixou essas palavras como uma dica aos casais que estão passando por este dilema. Para o brasileiro, isso pode ser também uma possibilidade para se sair da mesmice. “Eu estava fazendo o mesmo que eu fazia no Brasil há muitos anos. Então, eu falei: Por que não? Como seria o Fábio professor de forró em Ruanda?”, disse. Se depender dele, em breve muitos ruandeses estarão dançando forró. E o brasileiro, quem sabe, dançando ao som de ritmos locais.
Desmotivada a continuar trabalhando no meio corporativo, e “cansada de contar diariamente milhares de mortos por causa da Covid-19 no Brasil”, em novembro do ano passado Caroline Haddad resolveu se mudar para Ruanda, pequeno país do leste africano com uma população equivalente a da cidade de São Paulo. Vinicius Assis, correspondente da RFI na África do SulEla não veio fazer voluntariado, mas o objetivo era trabalhar com algo mais focado em questões sociais, em vez de continuar apenas “vendendo pasta de dente”, como ela disse durante a entrevista na casa compartilhada onde mora atualmente na capital, Kigali.“Eu nunca tinha pisado em um país do continente (africano)”, destacou. Ela reconheceu que a imagem que tinha em mente era a do estereótipo associado ao genocídio contra os Tutsis, em 1994. “Ruanda, acho que é um ponto fora da curva no continente. Pegando especificamente Kigali, é uma cidade super organizada, limpa, arborizada. Não é aquele ‘mar de gente’ andando pela rua, que é o que você imagina em uma capital, principalmente em um país em desenvolvimento”, conta ao falar sobre o que mais a surpreendeu aqui.Caroline nasceu em São Paulo. Cresceu em Araraquara, no interior, e voltou para a capital mais tarde, onde se formou em Comunicação com ênfase em Marketing. Também fez mestrado em Comunicação de Marcas, na França. O cansaço com o ambiente em que trabalhava a fez tomar uma decisão no fim de 2017: era hora de dar uma pausa. No ano seguinte começou a viajar, trabalhando remotamente com consultorias.“Essa é a vantagem de não ter emprego fixo: eu poderia ficar quatro ou cinco meses viajando (e trabalhando)'', lembrou.Descoberta do trabalho de Oranizações InternacionaisAssim foi entre 2018 e 2019. A ideia para os meses seguintes já era conhecer países do leste africano, mas veio a pandemia. Foi neste período que ela conversou, em São Paulo, com um brasileiro que morava em Kigali sobre o trabalho dele em uma organização internacional sem fins lucrativos que assiste pequenos agricultores ruandeses. Caroline trabalha nesta empresa atualmente. A experiência a tem feito refletir sobre este setor, que ela não conhecia.“Trabalhar para uma organização que tem um propósito mais social eu acho que é diferenciador”, disse. Mas ela contou o que a surpreendeu e pode decepcionar algumas pessoas que também querem vir trabalhar com o foco no lado social no continente africano.“Algumas questões acabam passando normalmente pela mesma estrutura que você passa trabalhando para uma grande empresa. Tem toda a coisa do corporativo, das relações interpessoais, da burocracia do escritório, principalmente se você trabalha em grandes organizações. Talvez a gente idealize muito, por entender que (o trabalho) é um propósito maior. A gente idealiza aquela estrutura e ela também acaba passando por questões que são sistemáticas no mundo que a gente vive”, esclareceu.A brasileira destaca que essas grandes organizações vivem de financiamentos, principalmente, de grandes fundações bilionárias e na maioria das vezes beneficiam organizações internacionais em países africanos, em vez das locais. Boa parte dos recursos é usada para manter essas grandes estruturas funcionando. Ou seja: nem sempre a maior parte do orçamento é usada em benefício direto da população.“Existe um fluxo grande de financiamento que vem, na teoria, para redistribuir riquezas, mas ele acaba voltando para organizações que são também internacionais, que têm a maior parte da liderança de pessoas estrangeiras morando em África”, lembra.Choque de culturasCaroline ainda fala do choque de pensamentos, ao enfatizar que, em vez de respeitar culturas locais, muitas vezes essas lideranças estrangeiras trazem um jeito de pensar e agir que é de fora e, mesmo assim, tentam adaptar isso à realidade local, o que nem sempre funciona.“Eu não contava com isso. Acho que isso é uma questão a ser levada em conta (por quem quer vir para cá fazer o mesmo). Não sei se trabalhando em uma organização brasileira no Brasil eu teria este tipo de observação e crítica. Gera uma certa confusão. Estou aqui para um bem social, mas por outro lado beneficiando uma organização que é estrangeira e que lida com milhões, bilhões de dólares, e de que modo que isso é revertido para a população local”, desabafou.Nem sempre ela vai às áreas rurais onde estão os pequenos agricultores, regiões com infraestruturas bem diferentes das que se vê na capital. É neste ambiente que ela se dedica mais às pesquisas, tem um contato direto com a população que mais precisa de ajuda para se desenvolver economicamente. “Quando converso com os agricultores acabo esquecendo um pouco o que está acontecendo no mundo dos escritórios”, diz. A maior parte das tarefas ela desenvolve remotamente, mas também já esteve em países como Tanzânia, Zâmbia e Quênia por conta do trabalho.No dia da entrevista, a brasileira levou a reportagem para um tour gastronômico em Nyamirambo, uma popular região de Kigali onde vivem muitos muçulmanos. A capital ruandesa faz jus a fama de mais limpa do continente africano, embora os desafios urbanos existam aqui também.A vida em RuandaCaroline se considera uma pessoa bem crítica e destaca a influência do autoritário governo de Ruanda no dia a dia da população. O país é comandado pelo mesmo homem há mais de 20 anos. O presidente Paul Kagame tem influência na política de Ruanda desde os anos 1990, quando houve o genocídio contra uma das três etnias do país. Fala-se em quase um milhão de mortos naquele sangrento ano de 1994. Este ainda é um assunto delicado para se tocar com quem não se conhece bem por aqui.A pele bronzeada e os lisos cabelos escuros que fariam Caroline ser chamada de morena no Brasil a fazem ter um tratamento privilegiado, como uma branca estrangeira em Ruanda.Ela ressalta que Kigali é uma cidade muito segura, o que para ela também tem a ver com este autoritarismo do governo. É comum ver policiais e até seguranças privados armados com fuzis nas ruas.Apesar das críticas ao chamado terceiro setor, ela recomenda a experiência, mas com cautela. “Se a pessoa tem interesse em conhecer esse mundo do desenvolvimento internacional é uma experiência importante, inclusive para ter essa percepção mais de perto. Mas tem de vir com a consciência de que não é tudo lindo, ‘cor de rosa’, que existem questões mais complexas que passam por essa questão de, alguma forma, ainda se hierarquizar o que é ocidente, europeu, americano, e o que é ‘não ocidente’, o sul global. No caso, a África, mas pode ser a América do Sul. Então é preciso ter consciência de que isso ainda existe, esse predomínio do norte global sobre o sul global”, conta.Ela considera a atual experiência “válida”, mas continua se fazendo perguntas como “a quem estou beneficiando com meu trabalho? A quem estou dedicando minha energia?”. A brasileira deixa transparecer que Ruanda não é onde pretende passar o resto da vida. Quer voltar ao Brasil um dia e acredita que esta experiência também a ajudará quando este momento chegar.“A gente, sim, tem questões muito sérias no nosso país, mas a gente tem a clareza de onde a gente deveria ou poderia ir. E isso de alguma forma até me dá mais motivação talvez em voltar para o Brasil em algum momento e também saber qual o nosso papel, o que a gente pode fazer pelo país”, finalizou.
Elias Ribeiro nasceu no Brasil, mas é na África do Sul que ele constrói sua carreira de produtor de cinema. Com sua produtora Urucu, ele já fez oito longas-metragens e foi nomeado duas vezes ao Oscar. A RFI encontrou Elias Ribeiro no Festival de Cannes, onde ele é um participante assíduo há 12 anos. A agenda de Elias Ribeiro em Cannes é impressionante. Ele acumula laboratórios com produtores emergentes, mesas redondas com jovens cineastas e encontros com produtores e instituições internacionais. O objetivo é um só: abrir espaço para o talento africano e colocá-lo no mapa do cinema internacional. Entre um encontro e outro no festival, o brasileiro encontrou um momento para falar com a RFI.Elias Ribeiro saiu do Brasil em 1999 já com a cabeça voltada para o cinema. Depois de passar por diversos países europeus, foi em 2010, aos 30 anos, para a África do Sul fazer um mestrado e nunca mais deixou o país.“Eu me apaixonei pela quantidade de histórias [do país]. Minha experiência internacional me fez virar um peixe grande em uma lagoa pequena. Abri a Urucu, me engajei no mercado internacional, a empresa cresceu e ficou impossível de ir embora”, lembra.Indicado ao OscarA Urucu, sua produtora, fundada em 2011, se dedica a desenvolver conteúdos audiovisuais autênticos em diversos países africanos. A empresa já produziu oito longas-metragens e uma coprodução com o Brasil – “Luna” de Cristiano Azzi. A Urucu conseguiu emplacar duas produções na competição pelo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro: o moçambicano “Comboio de Sal e Açúcar”, do diretor brasileiro Licínio Azevedo, radicado em Maputo, e o longa do Lesotho “This is Not a Burial, It’s a Resurrection”, de Lemohang Jeremiah Mosese.“Esse projeto ganhou 34 prêmios internacionais. É um trabalho de que a gente tem muito orgulho”, conta o produtor.“This is Not a Burial, It’s a Resurrection” foi desenvolvido pela Realness, um instituto cofundado por Elias Ribeiro em 2015 para incrementar a formação de roteiristas africanos. Com esse programa, ele quer compartilhar as histórias da África que o mundo desconhece, mas também da diáspora africana em muitos países, incluindo o Brasil.África tem muita história para contar“Na África, havia o clima de produzir coisas que emulassem Hollywood. Eu nunca acreditei nisso. Acho que história que funciona é história que viaja, que são autênticas. E na África tem muita história que a gente ainda não ouviu”, revela.Elias Ribeiro também quer desenvolver, mais do que coproduções norte-sul, parcerias sul-sul entre países que trabalham questões temáticas parecidas.“Acho que, por falta de recurso financeiro, a gente sempre olha para a Europa. Mas eu acho que a gente tem um nível conceitual. As questões que nossos cineastas estão desenvolvendo são bem parecidas com as do Brasil, Caribe ou América Central, onde existe um contingente grande da diáspora africana. Questões como pós-colonialismo, racialismo, identidade”, assegura.Ele não tem dúvida de que se impõe como um dos principais produtores africanos: “Se você falar de cinema africano, acho que as pessoas vão saber quem é Elias Ribeiro”, acredita. Por enquanto, o produtor pausou as parcerias com o Brasil, mas espera retomar a coprodução com o cinema brasileiro depois das eleições de outubro.
Foi aos 10 anos de idade que Expedito Araújo decidiu que queria ser ator, inspirado pela escola em que estudava, no Rio de Janeiro, onde os alunos eram incentivados a ir ao teatro. Nascido em São Paulo, ele começou a carreira artística na adolescência. Deu vida a personagens nos palcos e na TV, mas com o passar do tempo acabou se tornando gestor cultural, trabalhando nos setores público e privado. Vinícius Assis, correspondente da RFI na ÁfricaSeja atuando ou gerenciando projetos culturais, Expedito Araújo encara a arte como uma ferramenta transformadora, postura que o levou até o Timor Leste. “Fui convidado para fazer uma consultoria sobre a importância da cultura no desenvolvimento de um país”, conta à RFI.Em 2017, o brasileiro estava de férias na Tailândia quando uma amiga que vivia em Maputo, trabalhando para uma organização internacional, sugeriu que ele fosse para Moçambique ser voluntário em um orfanato. Naquela época, Araújo já havia visitado cerca de 40 países, mas nenhum africano.“Eu não tinha nenhuma curiosidade de conhecer, como a gente diz no Brasil, ‘a África’”, lembrou, destacando o hábito que muitos brasileiros têm de se referir ao segundo continente mais populoso do mundo como se fosse apenas um país. No total, a África é formada por 54 naçōes.Esta parte do planeta - que tanto tem em comum com o Brasil - não estava na lista dos destinos preferidos do ator que, no máximo, havia parado em Adis Abeba, capital da Etiópia, na escala de uma viagem para Cingapura. Mas ele acabou dando o braço a torcer e se programou para passar três semanas em contato com órfãos moçambicanos.“Primeiro foi uma descoberta. Eu não imaginava que existia no mundo uma realidade [como em Maputo]”, diz.Araújo também descreve a surpresa ao se deparar com uma cidade onde nem tudo é periferia, embora tenha ido para uma área mais carente. Nada que o desanimasse. Logo que chegou, montou uma peça com um grupo de adolescentes do local.Expedito explica que os adolescentes teriam que deixar o orfanato quando completassem 18 anos. Portanto, para ele, essa iniciação teatral poderia ser um possível caminho profissional.A primeira experiência em Moçambique - que ele mesmo classifica como "um processo muito intenso" - foi curta, mas suficiente para fazer com que ele se apaixonasse pelo país de litoral exuberante e desejasse voltar. Começou, naquele mesmo ano, o processo para conseguir um visto mais longo.O ator abriu mão do trabalho no Brasil e, na primeira oportunidade que teve, voltou. A decisão o ajudou a entender "o valor da simplicidade". Ele conta que nunca esqueceu o pedido que uma moçambicana o fez.“Uma menina, de 7 ou 8 anos, falou ‘tio posso pedir um presente? É meu aniversário.’ E eu lembro que eu já falei ‘caramba, ela vai pedir um presente e eu não vim com grana para comprar o que no Brasil me pediam de presente’. E ela me pediu uma caneta vermelha. Aquilo me sensibilizou de um jeito que eu fui para o quarto em que eu estava e comecei a chorar”, disse.A menina que tinha HIV e havia perdido os pais de forma trágica teve o simples desejo realizado pelo brasileiro. “Na verdade eu comprei um estojo de canetas e canetinhas, como a gente chama no Brasil, para pintar”, lembrou.Diversidade moçambicanaEnquanto muitos ainda enxergam apenas pobreza em um dos países africanos com mais brasileiros, ele exalta a diversidade que encontrou em Moçambique. “Não é só miséria. É um país com um dos litorais mais lindos de todos os países que pude conhecer no mundo”, enfatiza e lembra, também, das enormes diferenças de realidades na capital, Maputo.Além disso, chama atenção para o que qualquer brasileiro pode constatar ao desembarcar em Moçambique: muitos moçambicanos são apaixonados pelo Brasil. “Existe uma influência muito grande do Brasil aqui em Moçambique por conta das telenovelas brasileiras. Então, eles têm um carinho muito grande pelo brasileiro”, contou.Outros dois países da África que Expedito conheceu nos últimos anos foram a África do Sul e o Lesoto. Aos 42 anos, ele vive atualmente em Maputo, onde se engaja em projetos sociais e também se empenha em divulgar a cultura brasileira, participando de alguns eventos do Centro Cultural Brasil-Moçambique, além dos que organiza por conta própria. Esta parceria começou em 2017, quando ele foi convidado a integrar um evento em homenagem ao escritor e poeta Guimarães Rosa.“Foi tentador. E veio de novo o prazer de atuar’, lembrou o brasileiro que estava há muito tempo sem trabalhar como ator e encarou o monólogo "A Terceira Margem do Rio", considerada uma das obras mais importantes de Guimarães Rosa. A partir daí Araújo passou a, uma vez por mês, fazer uma atuação, e pensou em não voltar para o Brasil na data prevista até então.“Eu comecei a ver a vida que eu levava e tudo não tinha mais sentido para mim”, lembrou. Foi quando decidiu, de vez, viver como ator e professor de teatro em Moçambique. Eventos com obras de Clarice Lispector, de quem o brasileiro se diz fã, Nelson Rodrigues e Miguel Falabella já foram organizados por ele.Missão conscienteAté durante a pandemia de Covid-19, sob restriçōes de circulação e aglomeração, os eventos organizados pelo brasileiro continuaram, mas virtualmente. Foi assim que, por exemplo, falou sobre Tarsila do Amaral, considerada uma das principais artistas modernistas latino-americanas. Com duas transmissōes mensais ao vivo pela internet conseguiu alcançar quem estava inclusive fora de Moçambique.“Aí sim, começou uma missão consciente maior de trazer a cultura brasileira, aquilo que não está nas novelas, tanto para o brasileiro que está no Brasil ver, mas sobretudo para o moçambicano conhecer“, disse.Para a surpresa dele, no público dessas lives tinham pessoas que estavam em países como China, Chile, Austrália, Estados Unidos e também pela Europa aprendendo mais sobre a cultura brasileira. Apesar do maior alcance que obteve, Araújo celebrou a volta dos eventos presenciais, deixando transparecer a paixão que um ator tem por estar perto do público.Araújo não pensa em voltar para o Brasil, pelo menos por enquanto. Encara o que faz pela cultura brasileira e pelo povo moçambicano como uma missão, como a dos professores da escola onde ele estudou que, mostrando o caminho do teatro, o fizeram seguir a carreira que seguiu.“Quando me perguntam aqui ‘quando você vai embora?’ Eu digo ‘não sei’. Talvez quando minha missão acabar e eu não sinto minha missão cumprida”, conclui.



