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Planeta Verde
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Author: RFI Brasil
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© France Médias Monde
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Entrevistas sobre todos os temas relacionados ao meio ambiente. Análises sobre os principais desafios no combate ao aquecimento global, à poluição. Iniciativas para proteção dos ecossistemas e reflexão sobre políticas de prevenção de catástrofes naturais e industriais.
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Os esforços do mundo para combater o aquecimento global ainda estão longe de serem suficientes para a humanidade escapar de um cenário trágico de alta média das temperaturas no planeta de 2,8 °C até o fim deste século. A partir desta quinta-feira (6), a cidade de Belém, no Pará, recebe a maior reunião internacional sobre como corrigir a rota para evitar o pior. Lúcia Müzell, enviada especial da RFI a Belém A 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP30) acontecerá num contexto nada favorável: multilateralismo em crise, ausência dos maiores responsáveis históricos pelo problema – os Estados Unidos –, guerras em curso. Dois anos depois de os países terem atingido um acordo histórico para “se afastarem” dos combustíveis fósseis, responsáveis por 75% das emissões de gases de efeito estufa, o tema ficou em segundo plano, constata a cientista Thelma Krug, ex-vice-presidente do IPCC (Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas). Os investimentos em massa em energias renováveis, liderados pela China, ainda não conseguiram reverter a alta das emissões provocadas pelo petróleo, o carvão e o gás. "Os países não querem falar de phase out [saída] do petróleo porque muitos não têm ideia de quando vão conseguir fazer isso. Então, há uma maior velocidade na introdução de renováveis”, explica. "Para alguns isso vai ser mais fácil, para outros, vai ser mais difícil, até porque muitos não vão ter a mesma capacidade de ter tantas fontes de renováveis: não têm vento, não têm solar, nem hidrelétrica, nem geotermal que possa alimentar essa maior produção de energia. Há que se pensar em como os países poderão trabalhar, a partir de uma cooperação internacional fortalecida, com capacitação, transferência de tecnologia, para ajudar os países a fazer essa transição", diz Krug. Stella Hershmann, especialista em negociações climáticas do Observatório do Clima, complementa: "O que essa COP entregaria de mais revolucionário seria uma conversa honesta e justa sobre esses critérios e pensar: 'tá bom, quem vai começar? Quem vai apoiar quem? De onde vem o financiamento?’". Petróleo x combate ao desmatamento O problema é que o anfitrião da COP, o Brasil, exerce a presidência do evento com a credibilidade manchada, após a liberação de testes de prospecção para uma nova fronteira de exploração de petróleo, na foz do rio Amazonas. Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa, lamenta o mau exemplo: em vez de apresentar uma estratégia clara de transição energética, o Brasil chega a Belém com um plano de expansão dessas fontes poluentes. "Estamos presos ao slogan 'O petróleo é nosso', lá da década de 1960, 1970”, aponta Natalie Unterstell. "Eu quero que a gente fale que o ar é nosso, que o mar é nosso, que a floresta é nossa, que a energia limpa é nossa. Está na hora de trocar esse slogan.” Mas apesar do sinal negativo enviado pela medida, Thelma Krug considera "muito difícil" que algum país cobre o Brasil pela decisão, durante as negociações oficiais. A razão é simples: a maioria deles têm telhado de vidro na questão dos fósseis. "Há uma enorme quantidade de países aumentando a exploração de outras plantas de petróleo, de carvão, de gás natural. Temos Índia, China, Estados Unidos, Austrália, Canadá, para citar alguns", pontua. "Se houver pressão, ela virá da sociedade civil." Atraso na entrega de compromissos climáticos Nesta quinta (6) e sexta (7), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebe cerca de 60 chefes de Estado e de Governo para a Cúpula dos Líderes, que precede a conferência propriamente dita, a partir de segunda-feira (10). Ele deve insistir nos resultados positivos do país na luta contra o desmatamento, a principal causa das emissões brasileiras, à frente da agricultura e do consumo de fósseis. Os últimos números oficiais indicam a maior queda da devastação da Amazônia em 11 anos. A meta é zerar o desmatamento no país em dez anos. Os 196 membros da Convenção do Clima da ONU deveriam apresentar neste ano novos compromissos climáticos para encaminharem, até 2035, a transição para uma economia de baixo carbono. Às vésperas do evento, entretanto, apenas um terço deles cumpriu os prazos e, mesmo assim, as promessas colocadas sobre a mesa decepcionaram. "É um indicador muito ruim do comprometimento dos líderes dos países com o enfrentamento da crise climática. Por esse aspecto, é difícil você chegar a esse encontro otimista”, avalia Hershmann. "São muitos os desafios que essa COP tem que superar para entregar decisões significativas", diz. "Se a gente conseguir manter essa união, esse coletivo, independentemente da saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris, eu já vou ficar muito feliz”, reconhece Thelma Krug. Adaptação, implementação, justiça climática Já que visar uma aceleração da queda das emissões parece irrealista, as três principais apostas do Brasil para o final da conferência são: chegar a uma meta de recursos para a adaptação dos países aos impactos do aquecimento global – como o aumento de enchentes e secas –, acelerar a implementação dos compromissos firmados no Acordo de Paris – como triplicar as energias renováveis até 2030 –, e trilhar um caminho para a transição justa, incluindo alternativas para desbloquear o financiamento necessário para os países mais vulneráveis. As Nações Unidas avaliam que, se todas as promessas no horizonte de 2030 e 2035 forem cumpridas, o aquecimento poderia ser limitado entre 2,3 °C e 2,5 °C até 2100. "Se, antes, a gente só olhava para clima medindo as emissões, agora a gente tem que medir resiliência: como é que a gente está protegendo as pessoas, protegendo a água, garantindo energia”, frisa Unterstell. “Hoje, todo o mundo tem que se adaptar: do Alasca à Austrália, da Mongólia ao sul do Brasil. A questão é que as necessidades são diferentes e aí cabe pontuar um assunto muito importante que tem que ser resolvido em Belém: o financiamento da adaptação." Na prática, isso vai significar um desafio ainda mais complexo para a alocação de recursos, salienta Krug. "Eu lamento muito isso: já não tínhamos muitos investimentos alocados para mitigação e hoje a gente é obrigado a ter recursos também para adaptação e para todos os países, independentemente de serem países desenvolvidos ou em desenvolvimento." Depois do fracasso da última conferência de Baku em viabilizar o financiamento climático para os países menos desenvolvidos, a COP de Belém está pressionada a desbloquear amarras, como a maior participação dos setores privado, bancário e financeiro. Mas o presidente da COP30, André Corrêa do Lago, antecipa que não será possível garantir já em 2025 o caminho para se chegar aos US$ 1,3 trilhão que a ONU estima necessários por ano. "Se a gente mantiver esse gosto amargo depois da COP, eu acho que a chance é, realmente, desse sistema, desse regime perder relevância, das pessoas não acreditarem mais e não quererem que seus governos apostem nesse mecanismo, o que seria muito ruim”, adverte a presidente do Instituto Talanoa. Leia tambémCOP30: Nas comunidades tradicionais amazônicas, clima mais quente já assusta e mobiliza adaptação
Em uma semana, o Brasil estará no foco das atenções do mundo, com o início da Cúpula do Clima em Belém, no Pará (COP30). Num contexto internacional desfavorável, a presidência brasileira do evento trabalha para que esta seja a COP da implementação: que a conferência enderece soluções para os países tirarem do papel as promessas feitas até aqui, para o enfrentamento do aquecimento do planeta. Lúcia Müzell, da RFI em Paris Em entrevista exclusiva à RFI, em Paris, o presidente designado da COP30, embaixador André Corrêa do Lago, ressaltou que a revolução das energias renováveis desde a assinatura do Acordo de Paris, há 10 anos, traz razões para otimismo. “Antes do acordo, havia uma perspectiva de que a temperatura chegaria a no mínimo 4ºC até 2100, e agora já há um certo consenso científico que ela deve estar a caminho de 2,7ºC, se nós não fizermos ainda mais esforços", ressaltou. "Por mais que a gente não esteja no nível que nós deveríamos estar, muitos avanços aconteceram e nós podemos ser otimistas." A COP30 vai ocorrer em duas etapas: primeiro, nos 6 e 7, chefes de Estado e de Governo se reunião para a Cúpula dos Líderes na capital paraense, a convite do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O francês Emmanuel Macron e o presidente do Conselho Europeu, António Costa, estão entre os que confirmaram presença, mas é esperado que Belém não receberá números expressivos de lideranças, ao contrário do que ocorreu na reunião em Dubai, há dois anos. Na sequência, de 10 a 21 de novembro, acontece a conferência propriamente dita, reunindo diplomatas, cientistas, especialistas, setor privado e sociedade civil, para duas semanas de negociações sobre os principais temas relacionados à mudança do clima. "Nós vamos ter anúncios muito importantes de aumento de recursos para adaptação", antecipa Corrêa do Lago. A preocupação de que os Estados Unidos não apenas não participem da COP, como atuem para bloquear qualquer acordo em Belém, paira sobre o evento. O país, maior emissor histórico de gases de efeito estufa, não tem participado das negociações prévias à conferência, mas poderia enviar uma delegação para as negociações oficiais. “A questão da participação americana ainda é uma incógnita”, reconheceu o diplomata. Confira os principais trechos da conversa: Quantos líderes exatamente vão participar da cúpula? Quais serão os chefes de Estado e de governo esperados e, depois dela, quantos países vão participar da Conferência do Clima de Belém? O número de autoridades que vão vir para cúpula ainda está indefinido, porque qualquer programação que inclua chefes de Estado hoje em dia é muito complexa: questões de deslocamento, segurança etc. Eu acredito que vai ser uma cúpula com alguns dos chefes de Estado mais relevantes, porque a liderança do presidente Lula hoje é particularmente notável no mundo e a questão do clima é um tema que alguns acreditam que diminuiu de intensidade do ponto de vista das trocas internacionais, mas quando a gente está falando de fortalecimento do multilateralismo, a questão do clima é absolutamente central. Então, eu acredito que nós vamos ter a esmagadora maioria dos países na COP. Dez anos depois da assinatura do Acordo de Paris, não podemos dizer que algum país tenha cumprido plenamente as suas metas climáticas. Nenhum grande emissor está, de fato, no caminho de limitar o aquecimento global a 1,5ºC, conforme o acordo prevê, entre eles o próprio Brasil. O que precisa acontecer em Belém para que essa conferência não seja lembrada como apenas mais uma rodada de promessas? Eu acho que tem certos países que estão no bom caminho, sim. Um deles é o nosso. A nossa NDC [Contribuição Nacionalmente Determinada, na sigla em inglês] para 2030 deve ser cumprida. Nós realmente temos sido exemplares, inclusive porque, como todos sabem, um dos grandes problemas das nossas emissões é o desmatamento. Eu acho que nós vamos continuar a ter números positivos no combate ao desmatamento. Outros países também progrediram de maneira significativa, aumentando os seus investimentos em renováveis. Tem uma quantidade de países que a gente não imagina que evoluiu de maneira incrível. Você pega o Uruguai, por exemplo: em oito anos, passou a ter tanta eólica que agora está com 99% da sua eletricidade renovável. O Quênia também está praticamente com 99%. Para nós, brasileiros, é natural, porque o Brasil tem renováveis há muito tempo, mais ou menos a 90%. Essa tendência tem se expandido de maneira impressionante. Vários países desenvolvidos estão reduzindo de maneira significativa as suas emissões. Ou seja, tem muitos resultados, e um dos que são muito claros é o quanto nós já conseguimos mudar o caminho que estava traçado antes do Acordo de Paris. Havia uma perspectiva de que a temperatura chegaria a no mínimo 4ºC até 2100, e agora já há um certo consenso científico que ela deve estar a caminho de 2,7ºC, se nós não fizermos ainda mais esforços. Ou seja, o Acordo de Paris funcionou para baixar, mas ainda não o suficiente. A expectativa é que nós poderemos progredir ainda mais, porque a economia que mais está crescendo e tem mais impacto sobre o clima, a chinesa, está clarissimamente voltada para o combate à mudança do clima. Então, eu acho que é isso que a gente gostaria muito que saísse de Belém: que o mundo reconhecesse que, por mais que a gente não esteja no nível que nós deveríamos estar, muitos avanços aconteceram e nós podemos ser otimistas. O Brasil pode continuar sendo um exemplo na área de clima depois de o Ibama autorizar os testes para a prospecção de petróleo na foz do rio Amazonas, apenas duas semanas antes da COP30? Nós temos instituições, e o momento em que essa autorização pôde ser concedida foi agora. É o Ibama a instituição que decidiu. Eu acho que isso mostra que o Brasil, como todos os países, tem interesses e circunstâncias diferentes. Em um país que se tornou um produtor importante de petróleo, como o Brasil, é preciso pensar no petróleo no conjunto da equação do nosso esforço para diminuir a dependência das energias fósseis. Isso parece um pouco estranho, mas o Brasil já demonstrou coisas extraordinariamente positivas, como nas energias renováveis. Nós somos, ao mesmo tempo, campeões das energias renováveis e um importante produtor de petróleo. É preciso que a sociedade brasileira decida quais são as direções que o país deverá tomar e esse é um debate muito importante no Brasil. Decisões sobre a adaptação dos países às mudanças climáticas, que durante muito tempo foi um tema tabu nas COPs, estão entre as apostas da Conferência de Belém. Quais são as medidas concretas que o senhor espera sobre a adaptação? Isso não abre o caminho perigoso de os países acabarem contornando o grande causador do problema, que são os combustíveis fósseis? Quando eu comecei a trabalhar na área de clima, mais ou menos no ano 2000, havia, sim, essa ideia. “Meu Deus do céu, se a gente já for cuidar de adaptação, a gente não vai fazer o esforço de mitigação” [redução de emissões]. E a verdade é que nós todos estávamos errados, porque nós não sabíamos que a mudança do clima chegaria tão rápido. Você vê hoje, no Brasil, uma percepção muito clara do impacto da adaptação. Quando você pega o que aconteceu em Porto Alegre, é uma coisa que poderia ter sido diminuída se as obras de adaptação tivessem sido feitas – e isso é um alerta para todas as cidades brasileiras, de certa forma. Mas quando os rios secam na Amazônia, não é uma questão de adaptação. Isso só a mitigação resolve. Então, nós temos que avançar com os dois juntos. Leia tambémDivisão de europeus sobre metas climáticas simboliza riscos à COP30 em Belém Mitigação tem uma outra dimensão que sempre a tornou mais atraente na negociação que é a seguinte: onde quer que você reduza as emissões, vai ter um impacto no mundo todo. E a adaptação é vista como um problema local, um problema de prefeitura ou de estados dentro de um país, o que também é uma percepção errada, porque a adaptação é algo que tem hoje muito claramente um impacto grande, inclusive na atração de investimento para um país. Um país que tem condições para receber fábricas, infraestrutura, vai fazer uma diferença gigantesca nos investimentos. Eu acho que a gente tem que entender que são dois problemas diferentes, mas que são dois problemas que não podem ser dissociados. Na COP de Belém, nós vamos ter anúncios muito importantes de aumento de recursos, porque um dos problemas é que, como adaptação não tem um efeito global, muitos países doadores preferem dar dinheiro para mitigação porque, de certa forma, indiretamente, eles serão beneficiados, enquanto a adaptação é uma coisa que vai atingir pessoas que eles nem conhecem. Eu acredito que, inclusive, os bancos multilaterais de desenvolvimento vão colocar a adaptação como uma prioridade absoluta. Diante de um contexto internacional delicado, a presidência brasileira da conferência também dá ênfase à implementação das metas, ou seja, viabilizar que essas promessas feitas nas COPs sejam cumpridas. Vai ter como impulsionar a implementação sem resolver o grande embate sobre o financiamento, que sempre bloqueia as COPs? O senhor reconheceu recentemente que não vai ser possível garantir já em Belém o US$ 1,3 trilhão por ano de financiamento que se estimam necessários. Não, ninguém vai aparecer um cheque com esses recursos. Mas o que há é uma consciência muito grande de que a mudança do clima está atingindo todos os setores da economia e os países em desenvolvimento não podem continuar a ter as responsabilidades, que ainda têm de assegurar educação, saúde, infraestrutura para as suas populações e, além do mais, incorporar a dimensão de mudanças do clima. Desde o início dessas negociações, os países desenvolvidos, que já emitiram muito para o seu desenvolvimento, teriam que contribuir. Eles têm contribuído menos do que se espera, mas eles têm contribuído. Dos US$ 100 bilhões que eram supostos aparecer entre 2020 e 2025, só a partir de 2023 é que ultrapassaram os US$ 100 bi qu
A pecuária extensiva é o principal vetor da devastação da Amazônia: entre 80% e 90% das áreas desmatadas são convertidas em pasto para o gado, segundo diferentes estudos de instituições de referência, como Mapbiomas. Nos holofotes do mundo por sediar a Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP30), o país ainda engatinha em implementar a rastreabilidade da cadeia bovina, etapa fundamental para evitar que mais árvores sejam derrubadas para a produção de carne. Lúcia Müzell, enviada especial da RFI a Belém, Novo Repartimento e Assentamento Tuerê (Pará) Sede da maior reunião do mundo sobre a crise climática, o Pará – segundo maior produtor do Brasil, atrás do Mato Grosso – quer dar o exemplo e adota o primeiro programa de rastreabilidade do gado na Amazônia. O plano é que, até 2027, todo o rebanho estará com o chip na orelha, dando acesso ao trânsito completo de um animal desde o nascimento até chegar à prateleira do supermercado. Do ponto de vista ambiental, a informação crucial é saber se, em alguma etapa, o boi passou por áreas ilegalmente desmatadas. O controle do início da cadeia é o principal desafio para o sucesso do programa – e envolve centenas de milhares de pequenos produtores, espalhados pelo estado. Desde 2013, o Pará ultrapassou o Mato Grosso e está no topo da lista dos que mais devastam a Amazônia. “Para lhe falar a verdade, vontade de desmatar, eu tenho muita. Muita mesmo”, disse à RFI o agricultor familiar Adelson Alves da Silva Torres. Há 25 anos, ele deixou o Maranhão e chegou ao Pará, atraído pela promessa de uma vida melhor. Há 19, conseguiu um lote de 25 hectares no Assentamento Tuerê, conhecido como o maior da América Latina, no leste do estado. Nesta região, a pressão do desmatamento para a pecuária já devastou praticamente tudo que havia de floresta. Produtividade baixa impulsiona mais desmatamento Na maioria das vezes, os rebanhos ocupam vastas áreas, em lugares remotos, com produtividade muito baixa: menos de um boi por hectare. Na Europa, em países como Holanda, o índice chega a sete. Mas num país extenso como o Brasil, é mais barato abrir novas áreas de pastagem do que conservar as que já existem, com manejo adequado do pasto, do solo e do próprio gado. O desafio é ainda maior para os pequenos produtores, de até 100 animais. No Pará, 67% dos pecuaristas se enquadram nesta categoria. O carro-chefe da roça de Adelson sempre foi a agricultura: cacau, banana, mandioca. Nos últimos anos, voltou a criar gado e hoje tem dez cabeças. A diferença é que, desta vez, ele está recebendo orientação técnica para produzir mais, no mesmo espaço de terra. “Através dessas reuniões que eu tenho participado, eu resolvi deixar [a mata]. Até na serra, eu não posso mexer”, garantiu. “Se tivesse como o governo ajudar a gente no manejo dentro de uma área pequena, com a cerca elétrica, dividir tudo direitinho. Mas, para isso, nós, que somos pobres, nós não aguentamos. Se fosse assim, não precisava desmatar.” Mudança de mentalidade Convencer os agricultores de que dá para produzir mais sem derrubar a floresta é um trabalho de formiguinha. “É uma região muito desafiadora. São famílias que estão lutando no seu dia a dia, buscando a sua independência financeira, sua regularização fundiária e ambiental”, explica Leonardo Dutra, coordenador de projetos do Programa da Amazônia da Fundação Solidaridad, que atua há 10 anos em municípios na rodovia Transamazônica. A entidade ensina técnicas de agropecuária sustentável e ajuda os pequenos produtores a se regularizarem à luz do novo Código Florestal, adotado em 2012. “É um desafio porque são famílias que têm uma cultura longeva, com determinado tipo de trabalho, e a gente precisa avançar nessas técnicas para que elas assimilem, ano após ano. A gente costuma trazer lideranças de outras regiões que já conhecem o nosso trabalho, e aí a gente começa a ganhar confiança deles.” Do total da carne produzida no Brasil, 43% vem da Amazônia Legal, segundo levantamento do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia). A produção é profundamente fragmentada: entre o nascimento e o abate, o boi pode passar por três proprietários diferentes – e apenas a última etapa, a do fornecedor direto para o frigorífico, tem fiscalização ambiental rigorosa no país. Isso significa que milhares de produtores em condição irregular conseguem revender os animais para fornecedores "limpos", que comercializam com os grandes frigoríficos. É a chamada lavagem de gado. “A gente ainda não está em plenas condições de garantir que temos controle sobre isso”, afirma Camila Trigueiro, analista de pesquisa do Imazon, instituto especializado em desenvolvimento sustentável, em Belém. “Se a gente conseguir identificar todos os animais, a origem deles, tornar isso transparente, a gente consegue trazer para a sociedade e para as empresas que estão adquirindo esses animais a informação de que existe esse produtor, ele está comercializando o gado, e você deve verificar o status socioambiental dele – que é algo que a gente ainda não consegue fazer.” ‘Brinco’ na orelha do gado ainda ainda é exceção Atualmente, o único estado brasileiro que oferece a identificação da cadeia bovina é Santa Catarina, implementada há mais de 15 anos para o controle da febre aftosa. No âmbito federal, primeiro Plano Nacional de Identificação Individual de Bovinos e Búfalos foi lançado no fim de 2024, mas o prazo de implementação é extenso, até o fim de 2032. “A identificação individual tem um potencial muito grande de colocar a produção pecuária do Brasil num caminho de maior sustentabilidade. Mas para isso acontecer, você tem que trazer os produtores para junto porque, no fim das contas, quem vai fazer a transição e vai realizar as ações necessárias, botar o brinco no boi, fazer o processo de regularização ambiental, fazer o isolamento das áreas desmatadas, são os produtores”, destaca Bruno Vello, coordenador de políticas públicas do Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola). “Tem que ser viável para eles, em termos de custos, principalmente.” No Pará, estimativas de organizações da sociedade civil, como a The Nature Conservancy, indicam que cerca da metade do gado sai de áreas irregulares, com passivos ambientais e fundiários. O governo estadual não desmente e afirma que, destes, 50% poderão voltar para o mercado formal por meio de um novo protocolo de regularização de pequenos e médios produtores. O dispositivo inclui a obrigação de reflorestamento de áreas ilegalmente desmatadas. “Mais da metade deles estão em propriedades cujo desmatamento ilegal representa menos de 10% do tamanho total da propriedade. São propriedades que tendem a buscar a regularização porque o prejuízo delas é muito grande frente ao tamanho do passivo”, aposta o secretário do Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas), Raul Protazio Romão, que antes de assumir o cargo, era procurador do Estado. “O custo-benefício de essa propriedade se regularizar é muito maior.” Vulnerabilidades atrasam aplicação O produtor Wanderlan Sousa Damasceno, no Assentamento Tuerê, pode se enquadrar nesta situação: já recuperou áreas desmatadas ilegalmente e, nos cinco hectares onde cria 100 cabeças de gado, investiu em infraestrutura para fazer manejo com pastagem rotacionada, mais produtiva. Em um ano, o goiano conseguiu chegar a cinco animais por hectare. Mas as próximas etapas do processo, a identificação individual do rebanho, lhe causam uma certa apreensão. “Tem que ver também como é que funciona, porque às vezes a gente quer, mas não dá conta. Chegar lá e tem esses problemas de queimada”, relata. Na tentativa de se regularizar, Wanderlan se deparou com a informação de que existe um registro de uma queimada que, segundo ele, não aconteceu. “E aí como é que eu vou fazer, se eu moro aqui há tantos anos? Fui eu que abri isso aqui. Eu não tenho uma queimada de 2008 para cá”, garante. “Eu sou um cara analfabeto. A gente fica até com medo do mundo que a gente vive hoje, com as leis chegando. É complicado para nós.” Recursos para a implementação E tem ainda a situação da segunda metade dos produtores em situação ilegal, incluindo os que invadem terras indígenas, unidades de conservação ou outras terras públicas para criar gado. Nestes casos, a fiscalização e as multas deverão aumentar, assegura o secretário Protazio, e o custo da ilegalidade tende a ser ainda maior quando o programa de rastreabilidade sair do papel. O orçamento para reforçar as autuações, entretanto, ainda é vago. Mais servidores estão sendo contratados pela Agência de Defesa Agropecuária do Pará (Adepará), responsável pela implementação do programa do ponto de vista sanitário, e a frota de veículos da agência para percorrer o estado está sendo renovada. O desafio é imenso: com uma superfície mais extensa do que o dobro de um país como a França, o Pará tem 90 mil famílias que trabalham na pecuária, com um rebanho que chega a 26 milhões de cabeças de gado. As autuações cabem tanto à Secretaria Estadual do Meio Ambiente, quanto a órgãos federais, como o Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis) e o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade). A despeito de não apresentar números específicos sobre como essa fiscalização será ampliada, o secretário do Meio Ambiente pega o exemplo do esforço feito pelo estado no combate ao desmatamento, que caiu pela metade desde 2019. “Nós decuplicamos a força de combate ao desmatamento. O estado tinha dez fiscais, para o estado inteiro. Nós fomos para 100 fiscais”, defende. “Não só fiscais, como veículos, drones, impressoras. Todo o aparato necessário para essa fiscalização acontecer”, complementa. O maior frigorífico do país, a JBS, é parceiro do programa: financia parcialmente a compra dos “brincos” para pequenos produtores e das máquinas usadas para ler as informações. Em outubro, cerca de 180 cabeças de gado já estavam registradas, ou menos de 1% do to
A disparada dos preços do cacau nos últimos anos dá o que falar na Amazônia e impulsiona um movimento tímido, porém crescente, de produtores rurais que decidem reduzir o rebanho de gado e apostar na matéria-prima do chocolate. Na economia da floresta em pé, o cacau desponta não apenas como uma alternativa promissora de renda, como pode ser vetor de recuperação de áreas desmatadas. Lúcia Müzell, enviada especial da RFI a Marabá, Assentamento Tuerê e Altamira (Pará) Na região de Marabá, na fronteira leste do desmatamento da Amazônia no Pará, restam apenas vestígios do que um dia já foi tomado pela floresta. Dos dois lados da rodovia Transamazônica, obra faraônica do período da ditadura militar, predominam extensas áreas de pastagens para a criação de gado. É neste contexto que culturas agrícolas alternativas à pecuária, ou pelo menos complementares, aparecem como um caminho para conter este processo de avanço da agricultura em direção à mata. O cacau é uma das que melhor se associa à floresta nativa da Amazônia. Sob a copa de árvores como cumaru e andiroba, e com manejo adequado, a planta é mais resistente às pragas, tem maior durabilidade e dá frutos de melhor qualidade, com maior valor de mercado. Ao contrário de outros grandes produtores mundiais, em especial na África – onde a monocultura de cacau “a pleno sol” leva ao desmatamento –, no Brasil o plantio do fruto hoje ocupa áreas já degradadas ou em consórcio com outras culturas. O pequeno agricultor Rubens Miranda, 73 anos, chegou a Marabá aos 17 e, desde então, trabalha na roça e cria gado. Mas desde 2016, a área de pasto da sua propriedade de 27 hectares está cada vez menor – dando lugar a uma variada produção em sistema agroflorestal (SAF), da qual o cacau é estrela. "Estou com só 25 cabeças agora. Eu tinha 70 quando eu comecei a investir no plantio", conta ele. Produção de cacau por agricultores familiares No Pará, líder nacional no setor, mais de 80% da produção do cacau vem da agricultura familiar e 70% se desenvolve em sistemas agroflorestais como este, de acordo com um levantamento de 2022 da Embrapa Amazônia Oriental. Mas nem sempre foi assim. Na era dourada do cacau na Bahia, que alçou o país a maior produtor mundial no século 20, a produção em monocultura empobreceu a Mata Atlântica no nordeste. As lições da história agora servem de alerta para o avanço da cultura na Amazônia. "O que a gente vê no cacau é um exemplo de retorno de atividades agrícolas rentáveis trazendo árvores para o sistema. A gente entende que os consórcios são muito bem-vindos, fazem bem para a cultura do cacau, e são uma solução mais adequada para o que a gente está vivendo, especialmente as mudanças climáticas", indica João Eduardo Ávila, engenheiro agrônomo do Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola). O instituto é um dos que levam capacitação técnica para os pequenos agricultores não repetirem os mesmos erros do passado. "A cacauicultura tem um potencial enorme de renda para as famílias, para que elas não fiquem só dependentes da pecuária", frisa. A cultura também exerce um papel positivo contra a crise climática: com manejo adequado e à sombra de outras árvores, tem potencial de acumular até 60 toneladas de carbono por hectare no solo, operando como sumidouro de CO2 em regiões que sofrem cada vez mais as consequências do desmatamento. Retorno financeiro é maior, mas não imediato Mas o cultivo do fruto exige paciência e dedicação: a safra demora cerca de quatro anos para começar, a poda é trabalhosa e, para sair pelo melhor preço, a amêndoa precisa ser fermentada. No final, o retorno financeiro compensa – o quilo é comercializado a cerca de R$ 60, podendo chegar a R$ 90, conforme a qualidade. Os preços fazem os olhos de Rubens Miranda brilhar. Agora que consegue produzir mais no mesmo espaço de terra, ele se arrepende de, no passado, ter aberto tanta mata para criar gado. "Se fosse hoje, em uns cinco hectares eu trabalhava. Teria sido suficiente." Organizações da sociedade civil e outras instituições, como a Embrapa e o Ministério Público, além do governo do Pará, fazem um trabalho de longo prazo para convencer os agricultores familiares a migrarem para práticas agrícolas mais sustentáveis. Os gargalos são muitos: conhecimento técnico, logística, dificuldade de acesso aos mercados e, principalmente, recursos limitados para viabilizar a transição. "Nessa nossa região, é muito importante essa quebra de paradigmas, mostrar que é um resgate a um sistema produtivo que foi se perdendo ao longo do tempo. O monocultivo e a pecuária aqui na região é muito forte por questões históricas: aquela ideia de que você precisaria desmatar tudo para instalar um sistema novo", comenta Gilmar Lima Costa, engenheiro agrônomo do Ministério Público do Pará. " Você vê muitas extensões de áreas degradadas justamente pela falta de manejo adequado nas pastagens. Não faz a adubação, não faz a correção do solo, não faz a divisão das pastagens e, sempre que é possível, eles adentram e fazem a abertura de uma nova área, sendo que não era necessário fazer isso." Batalha pelo sustento do dia seguinte Os técnicos do Instituto de Desenvolvimento Florestal e Biodiversidade do Pará (Ideflor Bio) percorrem o Estado para acompanhar a transição destes agricultores e oferecer mudas de espécies nativas da Amazônia, e assim estimular a recomposição florestal. Mas Marcio Holanda, gerente do escritório regional em Carajás, reconhece que os que trabalham em SAF ainda são uma minoria. "Hoje, com as mudanças climáticas, a gente tem que incentivar, apoiar e buscar condições, buscando parceiros, se juntando para que os sistemas agroflorestais cumpram também a missão ambiental, num processo de reflorestamento, e na questão da geração de renda desses agricultores, porque já é comprovado que é viável", afirma. A 300 quilômetros a oeste, a organização Solidaridad busca aumentar a conscientização na região de Novo Repartimento e no Assentamento Tuerê, conhecido como o maior da América Latina. Historicamente, os assentamentos de terras registram índices superiores de desmatamento do que outras áreas da Amazônia – uma herança da campanha de ocupação da região por meio da devastação, a partir dos anos 1960. Para grande parte dos pequenos produtores, a maioria imigrantes de outros estados do Brasil, a principal preocupação é garantir o sustento do dia seguinte, salienta Pedro Souza dos Santos, coordenador de campo da entidade. "Isso é um desafio para nós. Quando a gente vê como era antes, o que é hoje, com o marco do Código Florestal, e o que pode ser no futuro, a gente tem que colocar tudo isso para o produtor, que antes ele não enxergava. Ele enxergava só o agora", diz. "A gente vem colocando na cabeça do produtor que ele pode produzir sem agredir, sem desmatar e que, nessa área aberta, ele pode ter o uso das tecnologias para ele avançar e ter uma produção sustentável. Mas ainda falta muito. Nós somos um pingo na Amazônia, tentando fazer essa transformação, dia após dia, ano após ano, fazendo aquela insistência, voltando lá de novo, dando acompanhamento", afirma Santos. Cacau como ferramenta de regeneração florestal O agricultor Jackson da Silva Costa, na localidade de Rio Gelado, simboliza essas vulnerabilidades da região. Desde o ano passado, a venda da produção de gado dele está embargada por desmatamento ilegal. Para voltar ao mercado, Jackson precisará recuperar a mata que derrubou ilegalmente em 2023. Nos seus 24 hectares de terra, ele já produz cacau há muito tempo. Agora, o aumento da área destinada ao fruto vai ser o caminho para a regularização do passivo ambiental gerado pela pecuária. "O entendimento que a gente tem é o seguinte: 'você não pode desmatar'. Só que chega um ponto em que é assim: 'eu vou fazer aqui e depois eu vou ver o que vai dar'", relata Costa. "Eu tenho consciência de que eu fui errado e por isso eu perdi. A conta chega e não tem para onde correr. Eu vou ter que pagar o que eu devo." Pagar o preço, para ele, significa isolar os 5 hectares desmatados e deixar a floresta se regenerar. Em consórcio, poderá plantar cacau e outros frutos compatíveis com a mata, como o açaí ou o cupuaçu. "Esse capim aqui já não vai me servir. Eu vou deixar ele já para iniciar o processo de reflorestamento", indica, ao mostrar uma área entre o local onde ele já plantava cacau e o que restou de floresta virgem na sua propriedade. "Eu vou deixar que árvores nativas cresçam. Mas com o cultivo do cacau que vai vir, com certeza vai dar uma rentabilidade maior. E quando eu for replantar, eu já quero colocar cacau de qualidade." Histórias de sucesso do chocolate da Amazônia Os encontros com a equipe da Solidariedad são importantes para manter a motivação de agricultores como Jackson, em meio às dificuldades de uma vida com poucos confortos. Nas conversas, Pedro traz as histórias de sucesso de cacauicultores da região, que conquistaram até prêmios no exterior pela qualidade do chocolate produzido na Amazônia. "O entendimento de que o produtor tem que esperar o momento certo para as amêndoas chegarem no ponto, tem que mandar uma amostra para teste e só depois vender, demora. A maioria aqui são produtores pequenos, que querem colher, processar todo o manejo rapidamente e logo vender", ressalta. "Mas quando ele faz o cacau fino, que é uma minoria muito baixa, e vende por um preço melhor, ele não quer sair mais. " Há cerca de 10 anos, a produção do Pará superou a da Bahia, antiga líder histórica do setor no Brasil. Na região de Altamira, maior polo produtor do Estado, a fabricante Abelha Cacau transforma o produto da região não apenas em chocolate, como explora o universo de 30 derivados possíveis do cacau – mel, suco, chá, manteiga, adubo e até cerveja. "De um quilo de cacau seco, a gente consegue extrair, em média, quase metade de manteiga, que hoje está a R$ 200. Ou seja, só esse derivado já tem mais de 100% de lucro", explica. "E se eu pego o que rest
A viagem é longa até a Terra Indígena Koatinemo: de Altamira, no coração do Pará, são mais três horas de "voadeira" pelo rio Xingu até chegar à casa do povo asurini, que acaba de comemorar meio século de contato com as populações urbanas "brancas". De lá para cá, o povo indígena resiste às pressões de invasores de terra, do desmatamento e do garimpo ilegal. Agora, faz frente a uma nova e poderosa ameaça: um clima cada vez mais quente. Lúcia Müzell, enviada especial da RFI à Terra Indígena Koatinemo (Pará) Em 2024, pela primeira vez, a seca recorde na Amazônia quebrou a safra da castanha, base da alimentação tradicional e carro-chefe da produção comercializada por populações indígenas, ribeirinhas e extrativistas da região. "Acho que passou uns três, quatro meses sem pingar uma gota de chuva. O verão castigou o nosso castanhal e não teve frutos”, relembra o cacique Kwain Asurini, na aldeia Ita’aka, com pouco menos de 400 habitantes. "A gente também está sentindo essa mudança climática aqui, mesmo sendo a floresta. A floresta sente que o aquecimento está, cada vez mais, prejudicando a própria floresta.” Sem água, os ouriços no alto de uma das árvores mais emblemáticas da Amazônia, a castanheira, não se desenvolveram, e eles caíram na terra vazios. A castanha é um dos produtos da floresta mais sensíveis ao calor, diferentemente de outros frutos, como o açaí. Milhares de pequenos produtores de comunidades tradicionais tiveram impacto não só na renda, como em toda a cadeia alimentar. A castanha é ingrediente para diversos pratos típicos e também é consumida por animais da floresta. Se eles não encontram o fruto, não aparecem e ficam menos acessíveis para a caça de subsistência dos povos indígenas. Iuri Parakanã, um dos caciques da Terra Indígena Apyterewa, descreve a situação como “um desespero” para toda a região conhecida como Terra do Meio. Ele conta que, naquele ano, a mandioca também não cresceu como deveria. "A floresta fala com os indígenas, e nós transmitimos a fala da natureza para o mundo saber o que está acontecendo, o que a natureza está sentindo. Estamos preocupados não somente com o nosso bem viver, mas também com os animais, que estão aqui na floresta e sentem isso”, salienta. "Tudo que plantamos morreu, por causa da quentura." Aquecimento pode chegar a 6°C em 2100 Já faz mais de 40 anos que o respeitado climatologista Carlos Nobre alerta sobre o risco de aumento desta “quentura” que Iuri Parakanã agora sente na Amazônia. Prêmio Nobel da Paz junto com os cientistas do Painel de Mudanças Climáticas da ONU (IPCC), Nobre afirma que os registros históricos da Amazônia apontavam para uma seca severa a cada 20 anos, em média. Nas últimas duas décadas, porém, quatro episódios graves de estiagem já ocorreram. Pior: os dois últimos se repetiram em dois anos consecutivos, 2023 e 2024 – quando o bioma teve a mais forte seca já registrada. "Mesmo que não tivesse nenhum fogo de origem humana, ainda assim seria muito difícil para a floresta se recompor. Quando tem uma seca muito forte, são quatro ou cinco anos para começar a recompor”, explica. "Mas aí vem uma outra seca, então, o que está acontecendo é que com essas quatro secas muito fortes, aumentou demais a área degradada na Amazônia." Estudos mostram que 40% da Amazônia já estão em algum estágio de degradação. A temperatura na região tem aumentado de 0,3°C a 0,4°C por década, havendo projeções que apontam para uma alta de até 6°C até 2100, no cenário de altas emissões de gases de efeito estufa, em comparação aos níveis pré-industriais. Na Terra Indígena Koatinemo, a adaptação às mudanças climáticas foi um dos tópicos mais debatidos na 10ª edição da Semana do Extrativismo (Semex), realizada em maio. Representantes de dezenas de comunidades tradicionais relataram o impacto da seca nos seus plantios de subsistência. "Os cacaus secaram, os rios e igarapés secaram e os animais sentiram. Os rios também secaram além do normal. Os peixes diminuíram muito”, disse Kremoro Xikrin, que veio do território de Trincheira Bacajá para o encontro. Carlos Nobre e o risco de colapso da floresta Enquanto isso, em volta da floresta protegida, o desmatamento continua – diminuindo a resiliência da mata para um clima em mutação. “A intenção deles é só fazer capim e pasto para o gado. Não plantam mais um pé de mandioca. Não plantam milho, não plantam feijão, não plantam um arroz”, diz o pequeno agricultor Joilton Moreira, ao contar sobre a pressão da ampliação das terras por grandes fazendeiros em torno da Comunidade Santa Fé, em Uruará, onde ele vive. Em 1990, um grupo de cientistas coordenados por Carlos Nobre advertiu, pela primeira vez, sobre o risco de a Amazônia atingir “um ponto de não retorno” causado pelas mudanças climáticas e à degradação – ou seja, de a floresta não conseguir mais se regenerar ao seu estado original. O aumento do desmatamento e dos incêndios é fatal para esta tendência. “Tem a seca do aquecimento global e aí fica mais seco ainda por causa do desmatamento, e muito mais quente. A temperatura ali às vezes aumenta mais de 2ºC do que vem de uma onda de calor na região, comparando com uma região que não tem nada de desmatamento”, salienta. "A floresta recicla muito bem a água, baixa a temperatura e às vezes até aumenta a chuva. Mas quando você tem superáreas desmatadas, diminui tanto a reciclagem de água que aumenta a temperatura e você tem menos chuva.” Outro complicador são as queimadas, em alta no bioma. Não mais do que 5% dos incêndios ocorrem por descargas elétricas, ou seja, por causas naturais como raios, assegura Nobre. "Não é natural. Os incêndios explodiram e mais de 95% são de origem humana. Aí vem um outro fator de degradação enorme da floresta: tivemos, no ano passado, a maior área degradada na Amazônia, porque teve muito incêndio”, ressalta. "E como tinha o recorde de seca e de onda de calor, a vegetação ficou muito inflamável, aumentando muito a propagação do fogo.” Populações locais se organizam para se adaptar Nas comunidades tradicionais, a escala de produção na floresta se dá pela união dos povos, e não pelo desmatamento e a monocultura. A castanha, comum na região do Xingu, conectou a Rede da Terra do Meio, uma articulação de povos indígenas, ribeirinhos, extrativistas e da agricultura familiar que, a partir dos seus conhecimentos de manejo florestal, busca impulsionar a comercialização do excedente da produção nos territórios. A quebra da safra da castanha em 2024 e a provável repetição do drama no futuro aceleram os projetos de diversificação produtiva da rede. Uma das ideias é planejar estoques de outros produtos menos sensíveis ao clima, como o babaçu. "Não vai dar para cruzar os braços agora e dizer que foi esse ano e, no outro, não vai ser. A gente sabe que sempre vai ter esses problemas, então a rede serve para observar, para tomar cuidado e a gente se organizar para fugir dessas situações”, afirma Francisco de Assis Porto de Oliveira, da reserva extrativista do rio Iriri e presidente da Rede Terra do Meio. “Quando fala de renda, a gente tem que ter muito cuidado, porque se deixarmos para cuidar do problema depois de ele ser identificado, pode ser muito tarde." A rede tem pressionado para que os produtos da floresta sejam cobertos por seguros climáticos, a exemplo dos que beneficiam monoculturas como a soja ou milho. Novas dificuldades surgiram, como o aumento das pragas nas roças e o impacto no transporte, majoritariamente fluvial. Com os rios mais secos, o acesso das comunidades tradicionais a políticas públicas também é prejudicado. Duas delas têm buscado ampliar a participação de indígenas, extrativistas e pequenos agricultores: o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Cada vez mais, as escolas nas comunidades locais oferecem merenda com ingredientes tradicionais, dando um impulso importante à diversificação produtiva nos territórios. Atualmente, 87 produtos da floresta foram integrados à cesta do PAA. "O próprio Estado não conhecia esses alimentos, e a gente precisou provar que eles existem. A gente precisou vir no campo, coletar o cacauí e levar par ao pessoal da Conab, que só conhecia o cacau”, observa Marcio Luiz Silva Souza, engenheiro florestal e técnico da Rede Terra do Meio. “Tem o uxi, uma fruta muito boa que tem em vários territórios e o pessoal não conhecia, a golosa, uma fruta muito saborosa. Palmito de babaçu, tucum, inajá, piqui, cajá. Várias frutas da natureza”, exemplifica. Coleta de sementes contribui para reflorestamento Novas parcerias comerciais impulsionam a diversificação. A produção de sementes, por exemplo, representa um potencial ainda pouco explorado pelas comunidades da floresta. "A gente está num ano de COP, está se falando de mudanças climáticas, de recompor a floresta que já foi destruída. Todos os territórios estão coletando e disponibilizando suas sementes”, continua Souza. Espécies conhecidas e valorizadas, como a castanha e a seringa, já estão consolidadas, mas a demanda por diversidade de sementes nativas tende a crescer para atender a obrigações de reflorestamento por grandes empresas ou empreendimentos, que possuem passivos ambientais. “A gente vai comprar ipê, jatobá, várias favas cabulosas que ninguém nunca observou porque não existia interesse econômico por elas. Com este estímulo do reflorestamento, a gente vai poder incluir segmentos da população brasileira que estão completamente isolados: pequenos produtores rurais muito vulneráveis, comunidades tradicionais, quilombolas, ribeirinhas, indígenas, que moram na floresta e estão longe dos grandes centros econômicos”, afirma Marie de Lassus, diretora de suprimentos da Morfo. A empresa é especializada em restauração de florestas nativas no Brasil e faz a ponte entre a demanda crescente e os coletores de sementes, usadas na recuperação de áreas desmatadas ou degradadas. “Eles mesmos estão começando a entender que existe potencialmente um mercado. Eu recebi sementes deles
A realização da próxima Conferência do Clima da ONU em Belém do Pará (COP30) aproximará, pela primeira vez, os líderes globais de uma realidade complexa: a de que a preservação ambiental só vai acontecer se garantir renda para as populações locais. Conforme o IBGE, mais de um terço (36%) dos 28 milhões habitantes da Amazônia Legal estão na pobreza, um índice superior à média nacional. Lúcia Müzell, enviada especial da RFI a Belém e Terra Santa (Pará) Ao longo de décadas de ocupação pela agricultura, mineração e extração de madeira, incentivadas pelo Estado, instalou-se na região o imaginário de que a prosperidade passa pelo desmatamento. O desafio hoje é inverter esta lógica: promover políticas que façam a floresta em pé ter mais valor do que derrubada. Os especialistas em preservação alertam há décadas que uma das chaves para a proteção da floresta é o manejo sustentável dos seus recursos naturais, com a inclusão das comunidades locais nessa bioeconomia. Praticamente 50% do bioma amazônico está sob Unidades de Conservação do governo federal, que podem ser Áreas de Proteção Permanente ou com uso sustentável autorizado e regulamentado, como o das concessões florestais. A cadeia da devastação começa pelo roubo de madeira. Depois, vem o desmatamento da área e a conversão para outros usos, como a pecuária. A ideia da concessão florestal é “ceder” territórios sob forte pressão de invasões para empresas privadas administrarem, à condição de gerarem o menor impacto possível na floresta e seus ecossistemas. Essa solução surgiu em 2006 na tentativa de frear a disparada da devastação no Brasil, principalmente em áreas públicas federais, onde o governo havia perdido o controle das atividades ilegais. A ideia central é que a atuação de uma empresa nessas regiões, de difícil acesso, contribua para preservar o conjunto de uma grande área de floresta, e movimente a economia local. Os contratos duram 40 anos e incluem uma série de regras e obrigações socioambientais, com o aval do Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). A madeira então recebe um selo de sustentabilidade emitido por organismos reconhecidos internacionalmente – o principal deles é o FSC (Forest Stewardship Council). Atualmente, 23 concessões florestais estão em operação pelo país. "Qualquer intervenção na floresta gera algum impacto. Mas com a regulamentação do manejo florestal e quando ele é bem feito em campo, você minimiza os impactos, porque a floresta tropical tem um poder de regeneração e crescimento muito grandes”, explica Leonardo Sobral, diretor da área de Florestas e Restauração do Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola), parceiro do FSC no Brasil. "O que a gente observa, principalmente através de imagens de satélite, é que em algumas regiões que são muito pressionadas e que têm muito desmatamento no entorno, a única área de floresta que restou são florestas que estão sob concessão. Na Amazônia florestal sobre pressão, que é onde está concentrada a atividade ilegal predatória, existem florestas que estão na iminência de serem desmatadas. É onde entendemos que as concessões precisam acontecer, para ela valer mais em pé do que derrubada”, complementa. Manejo florestal em Terra Santa Na região do Pará onde a mata é mais preservada, no oeste do Estado, a madeireira Ebata é a principal beneficiada de uma concessão em vigor na Floresta Nacional de Saracá-Taquera, entre os municípios de Oriximiná, Faro e Terra Santa. Numa área de 30 mil hectares, todas as árvores de interesse comercial e protegidas foram catalogadas. Para cada espécie, um volume máximo de unidades pode ser extraído por ano – em média, 30 metros cúbicos de madeira por hectare, o que corresponde a 3 a 6 árvores em um espaço equivalente a um campo de futebol. A floresta foi dividida em 30 “pedaços” e, a cada ano, uma área diferente é explorada, enquanto as demais devem permanecer intocadas. O plano prevê que, três décadas após uma extração, a fatia terá se regenerado naturalmente. "Para atividades extrativistas como madeira, a castanha do Brasil ou outros produtos que vem da floresta, a gente depende que ela continue sendo floresta”, afirma Leônidas Dahás, diretor de Meio Ambiente e Produtos Florestais da empresa. "Se em um ano, a minha empresa extrair errado, derrubar mais do que ela pode, eu não vou ter no ano que vem. Daqui a 30 anos, eu também não vou ter madeira, então eu dependo que a floresta continue existindo.” Estado incapaz de fiscalizar Unidades de Conservação A atuação da empresa é fiscalizada presencialmente ou via satélite. A movimentação da madeira também é controlada – cada tora é registrada e os seus deslocamentos devem ser informados ao Serviço Florestal Brasil (SFB), que administra as concessões no país. "Uma floresta que não tem nenhum dono, qualquer um vira dono. Só a presença de alguma atividade, qualquer ela que seja, já inibe a grande parte de quem vai chegar. Quando não tem ninguém, fica fácil acontecer qualquer coisa – qualquer coisa mesmo”, observa Dahás. A bióloga Joice Ferreira, pesquisadora na Embrapa Amazônia Oriental, se especializou no tema do desenvolvimento sustentável da região e nos impactos do manejo florestal. Num contexto de incapacidade do Estado brasileiro de monitorar todo o território e coibir as ilegalidades na Amazônia, ela vê a alternativa das concessões florestais como “promissora” – embora também estejam sujeitas a irregularidades. Os casos de fraudes na produção de madeira certificada não são raros no país. “Você tem unidades de conservação que são enormes, então é um desafio muito grande, porque nós não temos funcionários suficientes, ou nós não temos condições de fazer esse monitoramento como deveria ser feito”, frisa. “Geralmente, você tem, em cada unidade de conservação, cinco funcionários.” Em contrapartida do manejo sustentável, a madeireira transfere porcentagens dos lucros da comercialização da madeira para o Instituo Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e o SFB, que distribuem os recursos para o Estado do Pará e os municípios que abrigam as Flonas, como são chamadas as Florestas Nacionais. Populações no interior da Amazônia sofrem de carências básicas O dinheiro obrigatoriamente deve financiar projetos de promoção do uso responsável das florestas, conservação ambiental e melhora da gestão dos recursos naturais na região. Todo o processo é longo, mas foi assim que a cidade de Terra Santa já recebeu mais de R$ 800 mil em verbas adicionais – um aporte que faz diferença no orçamento da pequena localidade de 19 mil habitantes, onde carências graves, como saneamento básico, água encanada e acesso à luz, imperam. "Quase 7 mil pessoas que moram na zona rural não têm tem acesso à energia elétrica, que é o básico. Outro item básico, que é o saneamento, praticamente toda a população ribeirinha e que mora em terra firme não têm acesso à água potável”, detalha a secretária municipal de Meio Ambiente, Samária Letícia Carvalho Silva. "Elas consomem água do igarapé. Quando chega num período menos chuvoso, a gente tem muita dificuldade de acesso a água, mesmo estando numa área com maior bacia de água doce do mundo. Nas áreas de várzea, enche tudo, então ficam misturados os resíduos de sanitários e eles tomam aquela mesma água. É uma situação muito grave na região.” Com os repasses da concessão florestal, a prefeitura construiu a sede da Secretaria Municipal do Meio Ambiente, distribuiu nas comunidades 50 sistemas de bombeamento de água movido a energia solar e painéis solares para o uso doméstico. A família da agente de saúde Taila Pinheiro, na localidade de Paraíso, foi uma das beneficiadas. A chegada das placas fotovoltaicas zerou um custo de mais de R$ 300 por mês que eles tinham com gerador de energia. "Antes disso, era lamparina mesmo. Com o gerador, a gente só ligava de noite, por um período de no máximo duas horas. Era só para não jantar no escuro, porque era no combustível e nós somos humildes, né?”, conta. "A gente não conseguia ficar com a energia de dia." A energia solar possibilitou à família ter confortos básicos da cidade: armazenar alimentos na geladeira, carregar o celular, assistir televisão. Um segundo projeto trouxe assistência técnica e material para a instalação de hortas comunitárias. A venda do excedente de hortaliças poderá ser uma nova fonte de renda para a localidade, que sobrevive da agricultura de subsistência e benefícios sociais do governo. "A gente já trabalhava com horta, só que a gente plantava de uma maneira totalmente errada. Até misturar o adubo de maneira errada a gente fazia, por isso a gente acabava matando as nossas plantas”, observa. “A gente quer avançar, para melhorar não só a nossa alimentação, mas levar para a mesa de outras pessoas." Acesso à água beneficia agricultura Na casa de Maria Erilda Guimarães, em Urupanã, foi o acesso mais fácil à água que foi celebrado: ela e o marido foram sorteados para receber um kit de bombeamento movido a energia solar, com o qual extraem a água do poço ou do próprio rio, com bem menos esforço braçal. No total, quase 50 quilômetros de captura de água pelo sistema foram distribuídos nas comunidades mais carentes do município. O casal completa a renda da aposentadoria com a venda de bebidas e paçoca caseira para os visitantes no período da estação seca na Amazônia, a partir de agosto. O marido de Maria Erilda, Antônio Conte Pereira, também procura fazer serviços esporádicos – sem este complemento, os dois “passariam fome”. "Foi um sucesso para nós, que veio mandado pelo governo, não sei bem por quem foi, pela prefeitura, não sei. Mas sei que foi muito bom”, diz Pereira. "Não serviu só para nós, serviu para muitos aqui. A gente liga para as casas, dá água para os vizinhos, que também já sofreram muito carregando água do igarapé, da beira do rio." Urupanã é uma praia de rio da região, onde o solo arenoso dificulta o plantio agrícola. No quintal de ca
Já faz três décadas que quase 200 países se reúnem todos os anos para negociar soluções de combate ao aquecimento global – e, pela primeira vez, o encontro vai acontecer às portas da maior floresta tropical do planeta. Na COP30 em Belém do Pará, o mundo vai conhecer de perto não apenas a exuberância da Amazônia brasileira, como dará de cara com o colossal desafio de proteger um território mais extenso que a União Europeia, onde moram quase 30 milhões de habitantes. Como preservar a floresta e, ao mesmo tempo, garantir renda para as populações locais? Lúcia Müzell, eviada especial da RFI à aldeia Ita'aka, na Terra Indígena Koatinemo (Pará) Na Conferência do Clima da ONU, o Brasil dará visibilidade às pessoas que vivem sob a copa das árvores: indígenas, ribeirinhos e extrativistas, mas também populações urbanas, que dependem da floresta para sobreviver. O grande desafio é proteger a mata e as suas riquezas naturais, um patrimônio do Brasil e da humanidade, e ao mesmo tempo, garantir condições dignas de vida para esses habitantes, que lá nasceram e cresceram. Nos territórios amazônicos, é principalmente a agricultura em baixa escala que sustenta as famílias. Centenas de milhares desses pequenos produtores herdam o conhecimento tradicional sobre o manejo sustentável da floresta, porém esbarram em uma série de obstáculos para comercializar os seus produtos. Da logística complexa ao pouco acesso a crédito, da dependência de atravessadores à ameaça criminosa aos seus territórios, os "guardiões da floresta” estão à margem das estatísticas da economia amazônica. “A escala da biodiversidade hoje, tal como ela existe na Amazônia, não alimenta 2 milhões de pessoas”, observa Patricia Pinho, especialista em desenvolvimento sustentável e membro do Painel Intergovernamental da ONU sobre Mudança do Clima (IPCC). “De toda uma diversidade da Amazônia, de mais de 700 diferentes tipos de produtos da sociobiodiversidade mapeados, apenas nove compõem a cesta dos mais procurados, mais vendidos e comercializados, entre eles a castanha, açaí, alguns óleos essenciais e o cacau”, explica. O Brasil prepara um Plano Nacional de Desenvolvimento da Bioeconomia, que deverá ser lançado durante a COP30. O objetivo é fortalecer as atividades que contribuem para gerar recursos para algumas das regiões mais pobres do país, a uma condição: desmatamento zero. Valorização leva à proteção da floresta Na bioeconomia compatível com a floresta em pé, os produtos são extraídos da mata no seu ciclo natural, ou são plantados em consórcio com outras culturas, em harmonia com a mata. É por isso que é preciso ter cuidado quando se fala em dar escala a este comércio – a socio-bioeconomia não tem vocação a criar novas monoculturas, ao contrário da soja ou da pecuária, vetores da destruição da Amazônia. “O que a gente precisa é ter uma visibilidade do aspecto plural da sociobiodiversidade, agregar valor – não só o valor econômico, mas que inclua essas boas práticas, o conhecimento milenar que, uma vez perdido, não é recuperável facilmente”, salienta Pinho, diretora-adjunta do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia). O Pará é o estado amazônico onde as cadeias produtivas da floresta são mais desenvolvidas. Para o cacique Nei Xipaya, da aldeia Tucamã, na região de Altamira, o retorno financeiro da venda de especiarias da região é quase um detalhe: o dinheiro é usado para a compra de suprimentos básicos para a aldeia. Para ele, a prioridade mesmo é a transmissão da herança ancestral do cultivo da floresta – uma questão de sobrevivência para os povos indígenas. “Quando eu vendo uma castanha, eu estimulo que o jovem procure o pai dele para saber como é que procura castanha no mato, como é que se faz um paneiro, como é que se coleta”, conta. O fortalecimento das cadeias nativas ajuda a conter o êxodo da juventude indígena para os centros urbanos – que impacta na preservação dos territórios, sob constante pressão de invasores. “Nesse processo de coleta, você tem várias outras espécies de atividade que dá para você fazer, cuidar da medicina tradicional, conhecer e saber andar no próprio território. A geração nova não tem o domínio, e sim os anciões.” Articulação de comunidades locais A batalha para revalorizar os produtos florestais não madeireiros uniu comunidades que, até pouco tempo atrás, se viam como concorrentes mortais, como indígenas e seringueiros da região da Terra do Meio, no centro do Pará. Há mais de 10 anos, lideranças de dezenas dessas comunidades banhadas pelos rios Xingu e Iriri se aproximaram para ter mais força na negociação de preços dos produtos cultivados nos seus territórios, de uma extensão comparável a de um país como Portugal, com 9 milhões de hectares. A cada dois anos, eles se reúnem para Semana do Extrativismo, na qual debatem as dificuldades comuns e discutem soluções. Este ano, o evento aconteceu na pequena aldeia Ita’aka, com menos de 400 habitantes, na Terra Indígena Koatinemo. Edileno Camilo de Oliveira, 36 anos, vice-presidente do coletivo, lembra que, antes da criação de uma reserva extrativista no local e da consolidação da rede, havia áreas tomadas por madeireiros ilegais, onde os verdadeiros habitantes não podiam nem mais entrar. “Uma vez que o nosso produto tem valor, a gente vai buscar mais lá dentro, a gente vai longe e quando a gente está indo, a gente está olhando, está protegendo e está fazendo um serviço socioambiental”, ressalta. Juntos, os comunitários da Rede Terra do Meio conseguem atender à demanda de mercado por volume, mas a escala de produção não se dá por mais desmatamento, e sim por um sistema semelhante ao de uma cooperativa. A negociação de preços e valores acontece diretamente com as empresas. “A gente enxerga esses parceiros com um bom olhar, até porque antes disso, a gente vivia na mão do atravessador. Com os parceiros comerciais da rede, isso mudou”, afirma Edileno, que vive em Riozinho Anfrísio, a 370 quilômetros de Altamira. “A gente passou a ter um espaço de governança e a ter a nossa autonomia. É a gente que decide a forma que a gente quer fazer o comércio.” A valorização das cadeias nativas tem estimulado a diversificação da produção, deixando os comunitários menos suscetíveis às variações dos preços de mercado e aos impactos das mudanças climáticas, como foi o caso da quebra da safra da castanha em 2024. A rede também possibilitou às comunidades ampliarem a participação em políticas públicas de incentivo à agricultura familiar, como os programas nacionais de Aquisição de Alimentos (PAA) e de Alimentação Escolar (PNAE) – dos quais acabavam excluídos por falta de informação ou desconhecimento dos procedimentos técnicos e digitais. Vania Asuri vive no Território Indígena Koatinemo, às margens do Xingu. Mãe de três filhos, ela trabalha como técnica de enfermagem e ajuda na roça familiar. Nas horas vagas, ainda encontra tempo para jogar futebol e fazer pintura de tecidos, sua paixão. O excedente de mandioca e banana agora é vendido para o PAA, uma parceria firmada no ano passado. “Falta eles terem um olhar diferente para os nossos produtos, porque eles são originais. É tudo à mão, a gente não tem máquina, não tem aqueles de produtos que se joga para aumentar a produção”, argumenta. “Acho que falta muito isso ainda: eles terem um olhar diferente para o nosso povo.” Uma das condições para a associação aos parceiros é o respeito ao modo de vida e a cultura de cada povo da floresta – que tem outro tempo, outros prazos e outras formas de entregar os seus produtos. “Algumas empresas chegavam visando a compra de um produto, impondo aí as condições. Mas quando a gente fala na sustentabilidade alimentar e no mercado justo aqui, a gente não está vendendo só um produto. A gente está vendendo uma história e uma valorização”, reitera o cacique Nei Xypaia. Amazônia intocada: mais uma forma de preconceito Esse choque de culturas é um dos principais desafios para a ampliação do comércio justo com as comunidades tradicionais amazônicas, aponta Jeferson Straatmann facilitador de Economias da Sociobiodiversidade do Instituto Socioambiental (ISA). A organização, referência no Brasil para a proteção das comunidades tradicionais, atua fazendo a ponte entre as associações locais e potenciais parceiros comerciais. “Tem um entendimento muito racista sobre o que é conhecimento, o que é um modo de vida. Tem um entendimento que esse modo de vida deveria ser outro. Isso abre esses territórios, numa justificativa de economia, para invasões, para garimpo, para madeira”, constata Straatmann. “Normalmente, as empresas buscam a comercialização reduzindo o custo, independente do impacto social e ambiental. Essa mudança de paradigma na sociedade, desde as bases desse preconceito racial, do entendimento dessas culturas, do valor desses conhecimentos para a conservação e para um modo de produção que conserve ao mesmo tempo, é algo que está na base dos desafios”, aponta. Outro preconceito que Straatmann busca desconstruir, principalmente de governos e organizações estrangeiros, é o de que preservar a Amazônia significaria transformá-la em um santuário intocado. Ele argumenta que esta premissa demonstra desconhecimento não apenas da área continental do bioma, como da existência milenar de povos que sempre habitaram a floresta sem destruí-la. “Olhar a natureza como algo intocado é um formato de racismo que só entende a visão do branco. A visão eurocêntrica da sociedade, moderna, que precisou se apartar o homem da natureza, no intuito de que esse homem destrói”, aponta o doutor em engenharia de produção pela USP. “Não é essa a realidade desses povos. Os povos conservam a partir dos modos de vida deles. Esses modos de vida se transformaram e continuam transformando floresta em floresta.” Resgate da borracha amazônica, sob novas bases Uma das cadeias nativas que estão ganhando impulso graças ao comércio ético é a da borracha – e apesar do histórico trágico dos seringueiros na região. Depois de dois prósperos ciclos da matéria-prima
A pouco mais de dois meses da 30ª Conferência do Clima da ONU, em Belém, os europeus não conseguem se entender sobre quais objetivos climáticos vão apresentar à comunidade internacional. A hesitação europeia cristaliza um contexto internacional desfavorável para a pauta ambiental, apesar dos efeitos das mudanças climáticas estarem, a cada ano, mais evidentes. Lúcia Müzell, da RFI em Paris O prazo oficial termina no fim de setembro e, até o momento, apenas 31 nações do mundo submeteram os seus compromissos. Um dos principais objetivos da COP30, sob a presidência brasileira, é que os países atualizem as suas promessas de descarbonização no horizonte dos próximos 10 anos. Com base nestes compromissos, será possível ter mais clareza se ainda é viável limitar o aquecimento global a 1,5°C até o fim deste século – a maior ambição do Acordo de Paris. Na Europa, o impasse acontece porque, ao mesmo tempo em que o bloco consolida a sua nova Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC, na sigla em inglês), a ser entregue às Nações Unidas, os europeus também negociam os seus objetivos de redução de emissões de CO2 até 2040. Só que, em vez de a decisão sobre estes objetivos ocorrer em setembro, em âmbito ministerial, a discussão foi adiada para o fim de outubro, no próximo Conselho Europeu. Caberá aos chefes de Estado e de Governo dos 27 países chegarem, ou não, a um consenso. A negociação não será fácil e o acordo precisará ser aprovado por unanimidade. “Se não der certo, corremos o risco de termos um bloqueio institucional da questão climática, a apenas algumas semanas da COP, o que significaria corrermos o risco de chegarmos a Belém de mãos vazias”, resume Niel Makarov, especialista em políticas climáticas europeias e diretor do think tank Strategic Perspectives, em Bruxelas. “Isso mancharia a nossa credibilidade internacional na questão climática, justo a Europa, que sempre teve uma postura de vanguarda nisso. Nós estaríamos extremamente atrasados.” Negacionismo reforçado A saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris voltou a reforçar o negacionismo climático mundo afora, com impacto também no bloco europeu. Países como Hungria, Polônia e Eslováquia se opõem à meta de diminuição de 90% das emissões até 2040, como recomendado pela Comissão Europeia. O objetivo sinalizaria que o bloco estará no bom caminho para atingir a neutralidade de carbono até 2050. Entretanto, países como a França e a Alemanha, locomotivas da Europa, desejam mais clareza sobre o que exatamente entrará na conta da descarbonização e quais investimentos serão deslocados para a transição, por meio de uma política industrial verde. “O presidente da França caiu na tentação de levar o assunto para o Conselho Europeu, apesar de todos os riscos envolvidos: de chantagem dos países negacionistas, e de sinalizar uma confusão para os atores econômicos envolvidos nessa agenda”, diz Makarov. “A França está brincando com fogo, porque ela pode acabar contribuindo para reforçar os países que querem bloquear toda a agenda climática – e isso no ano de aniversário de 10 anos do Acordo de Paris.” O temor dos observadores do processo é que, se não houver acordo sobre a meta ambiciosa para 2040, o objetivo intermediário de 2035 acabe enfraquecido. A Polônia propõe que a NDC europeia prometa uma redução de 66% das emissões na próxima década – e não 72%, valor mais realista à luz do objetivo de -90% em 2040. Incertezas abalam confiança de investimentos verdes No meio empresarial, as incertezas sobre a ambição europeia já afetam a confiança dos investidores, indica Caroline Néron, diretora-geral de organização Impact France, que reúne 30 mil empresas comprometidas com a descarbonização da economia do país. “Quanto mais a dinâmica verde é fragilizada, mais o engajamento dos atores privados, mas também públicos, também se fragiliza”, afirma. “Nós queremos que a direção da Europa se estabilize, e que a dinâmica que tinha sido lançada se consolide. Ela foi abalada por tantas idas e vindas, ultimamente.” Célia Agostini, diretora-geral do Cleantech for France, incubadora de start-ups e fundos de investimentos em tecnologias de baixo carbono, pondera que os questionamentos levantados pela França são legítimos, já que a grande protagonista da transição energética no continente são os produtos chineses. A Comissão Europeia avalia que investimentos de pelo menos € 400 bilhões são necessários por ano para alavancar a indústria verde no bloco. “O que conta é que essa transição seja feita com equipamentos europeus e não seja dependente da China para os veículos elétricos ou os painéis solares, nem dependente dos Estados Unidos para a energia, com a importação de gás natural. Como vamos traçar essa trajetória com atores europeus?”, indaga. A China, maior emissora mundial de gases de efeito estufa, também não entregou à ONU as suas metas climáticas para 2035, mas promete divulgá-las dentro do prazo das Nações Unidas.
Com os termômetros marcando até 41 °C na França, muitos parisienses começam a aceitar a ideia de instalar ar-condicionado em suas casas ou apartamentos. Até hoje, o aparelho não é comum nos prédios residenciais franceses, por ser considerado pouco ecológico e desnecessário, já que as altas temperaturas duram poucas semanas. Porém, com as ondas de calor se tornando mais frequentes, essa situação começa a mudar. Maria Paula Carvalho, da RFI em Paris A consultora Leila Benaba, de 24 anos, está disposta a investir no próprio conforto. "Sim, eu já pensei em instalar ar-condicionado, mas como sou inquilina, não posso fazer isso agora", diz. "Mas quando tiver a minha casa, no futuro, eu gostaria de ter climatização caso o calor continue assim", completa. Se edifícios modernos de escritórios e lojas já são climatizados, ainda há muita resistência a este sistema, comum em outras capitais. "Mais de 35 graus Celsius se torna um problema em Paris", diz a aposentada Marise Touchard. Ela tem sofrido com o calor, mas nem pensa em comprar um ar-condicionado. "Não, definitivamente não. Nem em casa, nem na casa dos outros. Faz barulho e incentiva maus hábitos, como deixar tudo sempre fechado, e isso não é possível", afirma. Como ela, Charlyne Sand, artesã, também abre mão do aparelho. "Eu deixo uma corrente de ar em casa, fechando as persianas durante o dia", ensina. "Não, eu não gosto de ar-condicionado, porque fica muito frio de repente, uso às vezes no carro, mas não acho bom. Eu prefiro a corrente de ar", reforça. Consumo energético De acordo com a Agência de Gestão Ambiental e Energética (Ademe), 25% dos domicílios franceses tinham ar-condicionado em 2020, contra 14% em 2016. No caso de edifícios públicos, 40% são equipados com sistema de climatização. No país que dispõe de grande oferta de energia devido às centrais nucleares, o consumo para manter ligados os aparelhos de ar-condicionado representou, em 2020, apenas 3% do total, segundo a mesma fonte. A França é menos equipada em climatização do que seus vizinhos europeus e outros países desenvolvidos, como os Estados Unidos ou o Japão, onde 90% dos lares são climatizados, segundo a Agência Internacional de Energia (AIE). Zakarias Regis é programador de computação. A reportagem da RFI o encontrou trabalhando remotamente na praça de alimentação climatizada de um shopping center de Paris. O local é a opção do jovem para seguir ativo no verão, já que mora num pequeno apartamento, no último andar e com telhado de zinco. "Eu sou a favor de ar-condicionado nos locais coletivos. Eu moro em um pequeno apartamento e o calor é insuportável. Então, faz bem trabalhar em locais públicos climatizados. Mas em casa, não é necessário", disse à RFI. "Nos locais públicos é bom para todos, as pessoas se reúnem para aproveitar o ar-condicionado, em vez de cada um ter um aparelho individual", acrescenta. Para a associação Réseau Action Clima, que luta contra as mudanças climáticas, o uso do ar-condicionado deve ser uma opção nos casos de pessoas vulneráveis, como idosos e crianças, mas não deveria se tornar uma norma. "O princípio da climatização é esfriar o espaço interior, enviando o calor para fora. Então, dentro de casa sentiremos o frio, mas vamos jogar o calor para o exterior", explica Bastien Cuq, responsável pelo Departamento de Energia da Réseau Action Clima. De acordo com o especialista, o uso do aparelho traz dois problemas. "Nas ruas pequenas, onde não há muito ar que passa, a temperatura pode aumentar para os pedestres. O outro problema é a alta do consumo de energia, enquanto a França tem o objetivo de reduzi-lo", detalha. "Por enquanto, o ar-condicionado não representa muito gasto energético, mas se generalizarmos o seu uso, vai aumentar o consumo, especialmente no verão, quando o funcionamento das centrais nucleares é limitado", acrescenta Bastien Cuq. Aumento da temperatura de até 2 °C Segundo o Centro Nacional de Pesquisas Meteorológicas, em certos bairros de Paris, o uso de ar-condicionado pode aumentar em até 2 °C a temperatura exterior. Bastien Cuq sugere alternativas. "O que nós propomos são soluções que vão além de um paliativo", diz. "É possível ter menos calor dentro de casa com adaptações como isolamento térmico, vegetação no entorno, pintura do telhado com tinta branca ou manter as persianas fechadas", conclui. A portuguesa Maria Silva, moradora de Paris, concorda que é preciso combater as causas do aquecimento global. "Se o ser humano se preocupasse em plantar mais em vez de estar sempre construindo e pensando em dinheiro, o mundo estaria melhor", acredita. A solução para o calor? "Plantar mais árvores, plantar mais árvores", reforça. A França enfrenta a sua 51ª onda de calor desde 1947, e a segunda deste verão no Hemisfério Norte. Doze regiões do país estiveram sob alerta máximo para altas temperaturas. A adaptação, portanto, parece um caminho irreversível.
Quase 180 países participam de negociações globais para um tratado juridicamente vinculante sobre a poluição plástica, em Genebra, na Suíça. No ano passado, em Busan, na Coreia do Sul, países produtores de petróleo emperraram as discussões. O encontro começou na terça-feira (5) e deve durar dez dias. Para o Brasil, um dos principais pontos de discussão e das propostas apresentadas nas negociações é a questão da saúde humana, explica Maria Angélica Ikeda, diretora do Departamento de Meio Ambiente do Ministério das Relações Exteriores e negociadora-chefe da delegação brasileira. “As pesquisas já encontraram microplásticos no corpo humano, no feto, na placenta, no leite materno. Segundo os cientistas, estamos ingerindo muitos microplásticos por várias vias – alimentos, líquidos, etc. O Brasil enfatiza a importância de promover e fortalecer as pesquisas científicas sobre essa inter-relação entre poluição por plásticos e saúde”, diz Ikeda. “Nós sabemos que há muita oposição de algumas outras delegações por várias razões específicas. Estamos abertos ao diálogo e à negociação. Temos, como sempre, como princípio, a flexibilidade, porque queremos ouvir todas as delegações e chegar a um resultado consensual. Mas gostaríamos de preservar o conteúdo relacionado à saúde no tratado”, assinalou a negociadora brasileira. Outro ponto defendido pela delegação brasileira é a transição justa para os trabalhadores da cadeia do ciclo de vida dos plásticos, sobretudo os trabalhadores informais, incluindo os catadores de materiais recicláveis. "Os catadores dependem de valores justos para o material reciclável, para poder garantir sua renda. Eles vendem esse material para os recicladores. Então, é muito importante protegermos esses trabalhadores das flutuações de mercado e prover regulações que realmente assegurem essa fonte de renda”, enfatizou Ikeda. A representante do governo brasileiro também defende a criação de um mecanismo financeiro ambicioso, para que os países em desenvolvimento tenham meios de implementar o acordo. WWF apresenta relatório contundente A organização de conservação WWF corrobora as preocupações com a saúde. Um relatório da WWF de julho de 2025, intitulado Plásticos, Saúde e Um Planeta, destaca que a poluição por partículas plásticas microscópicas representa uma ameaça física e química, devido aos aditivos tóxicos. Substâncias como ftalatos, bisfenóis e PFAS ("químicos eternos") são particularmente preocupantes, associadas a riscos de infertilidade, câncer, doenças respiratórias e cardiovasculares, além de impactos no desenvolvimento cerebral. O relatório defende uma abordagem de “Saúde Única” (One Health), reconhecendo as profundas interconexões entre a saúde humana, animal e ambiental. Entre as reivindicações da WWF estão o banimento e a eliminação progressiva de plásticos de uso único e de químicos perigosos. Atualmente, menos de 6% das 16.000 substâncias químicas usadas em plásticos são reguladas internacionalmente, embora mais de 26% sejam conhecidas por serem perigosas. A ONG pede regras harmonizadas e vinculantes para o design de produtos plásticos, a fim de melhorar a gestão e a reciclagem dos materiais, além de financiamento e transferência de tecnologia para países em desenvolvimento. Assim, como a delegação brasileira, a WWF também solicita a transição justa para os trabalhadores da cadeia do ciclo de vida dos plásticos, incluindo os catadores de materiais recicláveis. “Uma questão de direitos humanos”, explica Michel Santos, gerente de Políticas Públicas do WWF-Brasil. Críticas à posição brasileira Embora o Brasil tenha uma Política Nacional de Resíduos Sólidos avançada, que prevê o ciclo de vida completo do produto, o país não tem defendido amplamente a redução da produção no tratado, devido à pressão da indústria petroquímica, que não quer ver essa redução no Brasil e no mundo, aponta Santos. Ele ressalta que a indústria insiste que bastam medidas de gestão e reciclagem ("midstream" e "downstream") para resolver o problema, mas a WWF defende que, sem medidas "upstream" (redução da produção), uma solução de fato não será alcançada. Santos lamenta que iniciativas domésticas importantes, como a Estratégia Nacional de Oceanos Sem Plásticos, estejam paralisadas e “desidratadas” por influência dessa indústria. Ele enfatiza que “o capital não pode se sobrepor à saúde das pessoas e à saúde do meio ambiente”. Perspectivas para o tratado Apesar do impasse em Busan, há um otimismo cauteloso em Genebra a respeito de um acordo. Maria Angélica Ikeda compartilha essa visão: “Acredito, pelas conversas com as outras delegações, que existe uma intenção forte dos países de conseguir um acordo em Genebra”. No entanto, ela reconhece que o texto é extenso, aborda muitos temas e as posições dos países são divergentes, o que torna a negociação desafiadora. Michel Santos elogia políticas em relação ao plástico de países como Noruega, Alemanha, México e Guatemala, que defendem um tratado ambicioso. Ele teme que outros, produtores de petróleo como Arábia Saudita, Rússia e Kuwait, possam tentar arrastar as discussões e evitar acordos vinculantes.
A proibição do consumo da água das torneiras em pelo menos 16 localidades do nordeste da França reforça um alerta que especialistas e organizações já emitem há pelo menos uma década: a regulamentação sobre a produção e o uso dos chamados poluentes eternos, que representam um sério risco à saúde e ao meio ambiente, deve ser atualizada. A partir dos anos 1950, estes produtos químicos se disseminaram nas mais diferentes indústrias e são “quase impossíveis” de serem retirados do ambiente, nas cidades como no campo. Utilizados pelas suas propriedades impermeabilizantes, resistentes ao calor, ao fogo ou à gordura, eles são encontrados em utensílios de cozinha, produtos de higiene, roupas ou objetos de decoração – mas, ainda mais preocupante, também estão nos alimentos e até na água, onde vão parar pela contaminação dos rios. Foi assim que, no começo de julho, as autoridades sanitárias da região de Ardennes, perto da fronteira com a Alemanha, ordenaram a proibição do consumo da água das torneiras por tempo indeterminado. Testes realizados a pedido de um consórcio jornalístico, em amostras recolhidas ao longo de 10 anos, detectaram índices de poluentes eternos de três a 27 vezes superiores ao tolerado pela Agência Nacional de Saúde da França. O limite autorizado é de 100 nanogramas por litro. A suspeita é que os Pfas – sigla para produtos perfluorados – tenham sido despejados no rio Meuse e seus afluentes por uma fabricante de papeis instalada na região. Novas análises deverão determinar o nível de contaminação dos solos – um cenário que seria catastrófico para a agricultura, observa o repórter investigativo Nicolas Cossic, do site Disclose, e um dos autores da reportagem de denúncia. “Terrenos agrícolas significam os nossos alimentos, significa o leite que bebemos e que pode ser particularmente contaminado”, diz. “Já houve casos similares de graves poluições por rejeitos de usinas de papel na Alemanha, nos Estados Unidos. Agricultores simplesmente tiverem que parar de produzir porque as terras deles se tornaram incultiváveis”, indica, à RFI. 'Quando procuramos, encontramos' A contaminação da água potável ilustra a que ponto o uso destes produtos fugiu, literalmente, de controle nos países industrializados. No começo do ano, a associação de proteção de consumidores UFC-Que Choisir divulgou o resultado de testes feitos em 30 lugares de toda a França. O estudo chama a atenção para uma molécula em especial: a TFA, o ácido trifluoroacético, resíduo da degradação de alguns tipos de agrotóxicos usados na agricultura e que foi encontrado inclusive na água distribuída em Paris. “Hoje, a questão que temos que colocar sobre a água da torneira é qual norma deveremos aplicar, porque atualmente, o TFA não está entre as moléculas procuradas para os índices oficiais sanitários das Agências Regionais de Saúde da França. Isso significa que não sabemos, oficialmente, se há ou não presença de TFA na água que bebemos”, constata Olivier Andrault, analista de alimentação e agricultura da associação. “Entretanto, nós percebemos que quando procuramos, encontramos. Detectamos este Pfas em 29 das 30 amostras que analisamos.” Existem milhares de tipos de Pfas, mas cerca de 10 são os mais utilizados pela indústria – portanto, são também os mais estudados. Eles podem afetar o organismo humano de diferentes maneiras. “Verificamos efeitos no fígado, aumento das taxas de colesterol – portanto um risco cardiovascular mais elevado –, efeitos na tireoide, com impacto importante no desenvolvimento dos fetos. Eles podem afetar a nossa capacidade de reprodução, nosso sistema imunitário, e alguns Pfas são cancerígenos”, explica a toxicologista Pauline Cervan, da organização francesa Générations Futures. “Todos não são tóxicos da mesma maneira e na mesma gravidade, mas o conjunto desses produtos é preocupante porque a presença de todos eles é perene no meio ambiente.” Filtragem é difícil e cara Ao contrário de outras substâncias, os Pfas não se degradam com o tempo – por isso, são chamados de poluentes eternos. Essa característica torna também mais difícil a retirada destas moléculas em ambientes poluídos, em especial a água. “É praticamente impossível, na escala de toda a França. Tecnicamente é quase impossível e, do ponto de vista econômico, seria extremamente caro. O problema do TFA e da sua presença na água potável é que é muito difícil de retirá-lo: as técnicas que utilizamos hoje para a obtenção da água potável não permite filtrar essa substância”, aponta Cervan. “Seria necessário instalar filtros mais eficientes, com novas tecnologias, como a osmose invertida, que parece ser a única tecnologia capaz de retirar o TFA. Mas é caríssimo”, diz. A especialista salienta que essas tecnologias consomem volumes abundantes de energia e gerariam um resíduo concentrado de Pfas, para os quais ainda não existe soluções adequadas. “Seria apenas deslocar o problema”, lamenta. Cervan ressalta, ainda, que as futuras leis sobre o assunto devem prever mecanismos para evitar que os industriais apenas substituam as moléculas conhecidas por outras ainda pouco utilizadas – e que poderiam se tornar o novo foco do problema, a longo prazo. Em fevereiro, a França adotou uma legislação pioneira para proibir progressivamente a produção desses poluentes nos cosméticos, têxteis e skis a partir de 2026. O texto também instaura o princípio de “poluidor-pagador”: as fabricantes terão de financiar uma parte das operações de descontaminação das agências regionais de tratamento de água. Mas para Andrault, a norma já nasce incompleta, ao deixar de fora um dos maiores vetores de Pfas no ambiente doméstico, as panelas antiaderentes. “E também não incluímos toda a variedade produtos alimentares, como as embalagens que, em contato direto com os alimentos e expostos ao calor do micro-ondas, representam um risco elevado de presença de Pfas”, adverte. Na Europa, apenas a Dinamarca possui uma legislação restritiva à produção e uso destes poluentes em uma vasta gama de produtos.
A primeira rodada de diálogos do chamado Balanço Ético Global em Londres entre a Presidência da COP30 e grupos seletos de lideranças da Europa, nesta terça-feira (24), coincidiu com o início da reunião da Otan e parte do mundo em guerra. O multilateralismo, fundamental para se chegar a um acordo climático, está em cheque. Yula Rocha, correspondente da RFI em Londres Como falar da luta ambiental, enquanto as maiores potências do mundo se comprometem a se armar cada vez mais para enfrentar o cenário instável da geopolítica atual? Como engajar a sociedade civil, empresas, governos e países vulneráveis a toda forma de conflito e manter a meta do limite de aquecimento global a 1,5 grau, acordada em Paris, há dez anos? A ministra do Meio Ambiente do Brasil, Marina Silva, idealizadora desse ciclo de escutas abraçado pelo presidente Lula e o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, aproveitou a ocasião para falar de ética em tempos de guerra. “Acho que nesses momentos difíceis que nós estamos vivendo de guerra é fundamental criar um constrangimento ético em relação à diferentes formas de auto-destruição que estamos fazendo. Uma hora é por uma guerra de uns contra os outros, mas há uma guerra silenciosa e essa não é sentida com a mesma radicalidade das guerras bélicas.” A guerra silenciosa a que a ministra se refere é a guerra contra a natureza, em curso há séculos e que, como consequência, mata mais gente por ano do que matou toda a pandemia de COVID-19. Para ela, o único caminho é o caminho da paz entre pessoas, nações e a natureza. “Ou nós interrompemos essa guerra e integramos economia e ecologia numa mesma equação, o social e o ambiental , o político e o ético, ou não haverá chance de manutenção da vida, do desenvolvimento e da prosperidade no planeta”, disse a Marina Silva. O embaixador do Brasil no Reino Unido, Antonio Patriota, que também participou da rodada do Balanço Ético Global, lembrou que os investimentos militares foram recorde no ano passado, o dobro comparados à cifra do financiamento climático em discussão nas últimas COPs de 1,3 trilhão de dólares, a partir de 2035. “Desafio para todos nós pararmos para refletir um pouquinho se vale a pena continuar investindo em salvação ou destruição.” O primeiro de seis diálogos regionais do Balanço Ético Global aconteceu no Jardim Botânico de Londres, dentro do pavilhão de clima temperado, a temperaturas tropicais do verão europeu. A sessão foi facilitada pela ex-presidente da Irlanda, Mary Robinson, que ouviu dos participantes - entre líderes religiosos, artistas, comunidades locais, afrodescendentes, jovens, cientistas, empresários e ativistas - a necessidade de se reconstruir relações e comunidades. É o espírito do mutirão proposto pela presidência brasileira da COP30, a cúpula climática da ONU que acontece em novembro em Belém, palavrinha ainda difícil de ser pronunciada pelos estrangeiros. As contribuições apresentadas nessas sessões de diálogo serão entregues aos chefes de Estado e de governo e negociadores da COP30 e em diferentes formatos - de textos técnicos à pintura, exposições e poesia. O curador dos diálogos do Balanço Ético, diretor da Outra Onda Conteúdo, Eduardo Carvalho, acredita na cultura como uma plataforma eficiente de ação para solução climática. “Além da cultura em si, teatro, cinema, etc., a gente trazer a valorização dos saberes tradicionais da cultura dos povos ancestrais e quilombolas, tudo isso que precisa ser respeitado e que, na verdade, se inspira na natureza e pode nos inspirar a combater essa crise de imaginação que o mundo vive hoje".
Pela primeira-vez, um grande número de chefes de Estado e de Governo e ministros se deslocaram para uma reunião internacional para abordar a proteção dos oceanos. Se, por um lado, a 3ª Conferência da ONU em Nice sobre o tema (UNOC3) resultará “apenas" em uma declaração política de engajamento dos quase 130 países representados, por outro, o evento consolidou de vez os oceanos na agenda ambiental global. Lúcia Müzell, enviada especial da RFI a Nice Mais de 60 líderes de países dos cinco continentes estiveram na cidade do sul da França para o evento. Assim, no segundo dia, o presidente francês, Emmanuel Macron, anunciou que, até setembro, 60 países se comprometeram a ratificar o Tratado de Proteção da Biodiversidade Marinha em Áreas além da Jurisdição Nacional (conhecido pela sigla BBNJ). O número é suficiente para que o acordo, assinado em junho de 2023, entre em vigor. O Brasil prometeu ratificar o texto até o fim deste ano. André Abreu, diretor de Políticas Internacionais da Fundação Tara Oceans, considera que, ao debater "todas as grandes questões" em alto nível, a UNOC3 atingiu o status de “mini-COP”, a badalada Conferência do Clima da ONU. As duas edições anteriores do evento sobre os oceanos ocorreram em 2017, em Nova York, e em 2022, em Lisboa. "Esse tratado do alto mar fica geralmente nas prateleiras dos ministérios, sem ter visibilidade para os ministros do meio ambiente ou das ciências. Trazer essa ambição de ratificar o Tratado do Alto Mar é um exemplo de como essa conferência pode fazer diferença”, avalia Abreu, que acompanha há mais de 20 anos as tentativas de acordos internacionais pela proteção dos oceanos. "Um outro tema é moratória sobre a exploração mineral dos fundos marinhos. Eram 30 países no grupo de alta ambição na ISA [Autoridade Internacional de Fundos Marinhos] e, aqui, dobraram. Está tendo uma convergência de anúncios bastante impressionantes, apesar da declaração política, que deixa a desejar." Este texto foi negociado entre os participantes antes da conferência e a declaração deve estimular um impulso político ao tema nos países signatários. Ao longo da semana, estão sendo anunciados novos compromissos voluntários para o cumprimento do único dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU específico sobre os oceanos, de número 14. Compromissos do Brasil O Brasil, por exemplo, se engajou a atingir até 2030 a meta das Nações Unidas de 30% de áreas marinhas protegidas e detalhou os seus planos para a preservação dos recifes de coral e dos manguezais. O país já tem 26,5% da sua zona marinha e costeira dentro de unidades de conservação. Para Marina Corrêa, analista sênior de conservação dos oceanos da WWF Brasil, o principal desafio para atingir a meta de 30% é que as novas áreas criadas tenham representatividade de habitats e sejam de fato implementadas. "A gente sabe que tem muitos desafios, mas estamos vendo muitos esforços do Brasil”, disse. “O que o Brasil fez na sua presidência no G20, priorizando o oceano e a inclusão do oceano nas NDCs [os planos climáticos dos países] e incluindo o oceano nas suas próprias NDC, são sinalizações de um país que vem querendo amadurecer essa agenda. Eu diria que Nice foi um trampolim para a agenda de oceano para a COP30”, afirma. A CEO da Conferência do Clima de Belém, Ana Toni, concorda: "Vai influenciar de maneira estruturante. O clima e os oceanos estão juntos. A gente separa em diversos eventos, mas, na verdade, eles estão juntos e a gente espera expressar tanto aqui, como na COP30, essa unidade, de que temos de proteger os oceanos para proteger o clima e proteger o clima para proteger os oceanos”, declarou Toni, à RFI. Sinergia entre clima e oceanos Os oceanos captam 25% do CO2 ejetado na atmosfera e têm um papel fundamental na regulação climática da Terra, ao estocar calor. Entretanto, o excesso dos dois fatores tem levado as águas oceânicas a se tornarem mais ácidas, causando o colapso de ecossistemas marinhos. André Abreu explica que as temperaturas extremas na superfície favorecem a proliferação de algas que retiram oxigênio do mar – e as áreas com níveis mínimos de condições para a vida estão se expandindo. "Fala-se hoje de 'dead zones', porque tem bolsões inteiros do oceano, não somente nos estuários, que seria o esperado, mas bolsões inteiros no meio do mar, com praticamente zero oxigênio. Só bactérias e vírus que sobrevivem ali”, lamenta o pesquisador. "Explicar isso, trazer essa urgência para a COP de Belém é superimportante, porque o oceano está sendo impactado demais pelas mudanças climáticas.” Impacto dos combustíveis fósseis A Conferência dos Oceanos também resultou em um apelo, assinado por 90 países, por um tratado “ambicioso" contra a poluição plástica, incluindo a delicada questão da redução da produção de polímeros – derivados do petróleo, um combustível fóssil. No evento, organizações ambientalistas ainda chamaram a atenção para os riscos de projetos de exploração de gás e petróleo offshore para os mares. A advogada Renata de Loyola Prata, coordenadora de Advocacy e Projetos no Instituto Internacional Arayara, critica o projeto do governo brasileiro de oferecer 147 novos blocos de exploração de petróleo e gás no país – dos quais um terço se localizam na foz do rio Amazonas. "Nós temos ressalvas, preocupações sobre o Brasil de fato ser uma liderança climática”, sinaliza. "Apontamos incongruências. É realmente uma contradição o Brasil se colocar como liderança climática e abrir essa nova fronteira exploratória, sendo apelidada como o novo pré-sal”, aponta a advogada. "Acho importante que o tema dos combustíveis fósseis e as suas emissões, que afetam os oceanos, esteja presente”, disse Ana Toni. "São debates difíceis, mas eles têm que acontecer, e fico muito feliz que aqui, e também na COP30, a gente vai poder debater de coração aberto, tentando procurar maneiras que sejam boas para as pessoas e, logicamente, boas para o planeta.”
O Brasil realiza a Conferência do Clima da ONU, a COP30, em Belém, em novembro, e os investimentos para adaptação e combate às mudanças climáticas, tanto públicos como privados, estão no centro dos debates. Mas como as empresas privadas podem colaborar? A participação de governos e representantes da sociedade civil (ONGs, associações) nas negociações climáticas é relativamente conhecida. Já o papel do setor privado costuma ser menos noticiado e até levanta questionamentos. Para a embaixadora Liliam Chagas, diretora do Departamento de Clima do Itamaraty, a crise climática e suas negociações devem envolver todos os setores. Ela participou nesta segunda-feira (26) do Brazil Climate Summit Paris (BCS Paris), organizado pelo Instituto Europeu de Administração, o Insead, com apoio de empresas e organizações de consultoria e gestão. O evento discute como o país pode atrair mais capital sustentável e verde."Essas conversas sobre clima, precisam envolver muito além de governos. Um evento como esse, que traz empresas, CEOs, pessoas que trabalham com sustentabilidade no setor privado, ajuda a ir construindo o conhecimento necessário para que os governos possam saber onde o setor privado precisa de maior regulamentação, ou onde eles precisam de estímulo para investir em um determinado ator da economia", diz Liliam Chagas sobre o BCS Paris. "Isso tudo é uma construção que vai levando a um maior conhecimento para que as decisões possam ser tomadas na direção correta", salienta. Nas últimas COPs, no entanto, a grande presença de investidores e empresas do setor privado geraram críticas da sociedade civil, comparando a conferência com um grande evento para empresários. Liliam Chagas defende que uma COP é uma "reunião de vários elementos", mas o principal continua sendo as negociações multilaterais sobre a Convenção do Clima, do Protocolo de Kyoto e posteriormente do Acordo de Paris."Quem executa as políticas decididas, no entanto, vai muito além dos governos", diz. “Então isso justifica que empresas, mas também universidades, centros de pesquisa, de tecnologia, sejam importantes. Que esse grupo de atores participe desses encontros, porque eles fazem parte da solução", defende.Para a embaixadora brasileira, a palavra de ordem é “mutirão”. “Cada país, cada parte desse jogo, precisa dar sua contribuição. Tem lugar para todo mundo nas COPs”, diz. “A mobilização global contra a mudança do clima que a gente está oferecendo é dentro do conceito de mutirão, que é bem brasileiro, vem de uma língua indígena brasileira, o Tupi e significa que quando você tem uma tarefa muito ampla, muito difícil de fazer, você não pode fazer sozinho. Então é isso que nós estamos chamando, o mutirão global contra a mudança do clima. Além disso, um balanço ético global, onde a gente espera, ao longo do ano, ter discussões em pontos específicos do mundo, trazendo pessoas, não só empresários, mas artistas, filósofos, estudantes, comunidades, sobre uma discussão sobre que futuro nós queremos, que futuro a gente precisa construir para que as próximas gerações continuem usufruindo”, diz.VulnerabilidadesO Brasil tem a ambição de se posicionar como parte da solução para a transição energética, mas o país esbarra em sua própria vulnerabilidade às mudanças climáticas. Elas ficaram claras nas inundações do Rio Grande do Sul, nas secas que assolaram diversas regiões do país, inclusive a amazônica no ano passado.Para Liliam Chagas, contudo, estas vulnerabilidades só mostram que o Brasil está certo em tentar liderar o mundo para construir políticas que tragam soluções de uma forma mais rápida.“A COP30 será uma janela de oportunidades para que novos mecanismos, novas ferramentas de restauro de floresta, de reflorestamento e de soluções financeiras para que isso possa acontecer”, defende a embaixadora, que apresentou o projeto Arco da Restauração. A iniciativa do governo brasileiro visa restaurar 6 milhões de hectares de floresta na região conhecida como “arco do desmatamento”, região críticas de desmatamento da floresta amazônica, que engloba partes dos estados Mato Grosso, Acre, Amazonas, Pará, Maranhão, Rondônia e Tocantins. O projeto, apresentado na COP28, em Dubai, tem o ambicioso objetivo de reduzir 1 °C nas temperaturas da Terra. O Acordo de Paris cumpre 10 anos em 2025 e o aniversário será marcado pelo aquecimento recorde do planeta. Em 2024, o aumento das temperaturas da Terra ultrapassaram pela primeira vez o +1,5°C, meta fixada pelo acordo.Mutirão A ex-estudante do Insead Luiza Boechat entendeu o conceito de mutirão defendido por Liliam Chagas. Ela é uma das responsáveis por trazer para a França, em 2024, o Brazil Climate Summit (BCS), realizado primeiramente na Universidade de Columbia, em Nova York, desde 2022."Acho que a COP do ano passado teve grandes avanços em NCQG (Novos objetivos coletivos quantificados de financiamento climático) e a desse ano vai ter o Baku to Belém roadmap, para mobilizar U$ 1,3 trilhão (para financiar o enfrentamento das mudanças climáticas). Assim você faz o mundo das finanças funcionar. Você precisa saber: o dinheiro tem que fluir para as coisas acontecerem”, defende Luiza."A Europa é um ambiente mais regulado em clima do que os outros países. Eles têm mercado de carbono há décadas. Eu acho que até por ter uma renda média maior, o consumidor europeu também consegue pagar produtos com green premium (de valor mais elevado, mas com menor pegada de carbono) que eventualmente algumas áreas oferecem. Então, acho que tem uma pressão também da sociedade um pouco maior em clima. Por isso, para mim, fazia muito sentido ter o BCS aqui", afirma."É claro que os investidores, principalmente os europeus, muito mais do que outros investidores, têm essa preocupação com sustentabilidade um pouco maior do que os outros lugares do mundo", diz Vitória Raymundo, aluna do Insead e uma das organizadoras do BCS de Paris este ano.“O objetivo é unir investidores que querem pagar e investir em clima para falar, olha, o Brasil tem soluções e potencial, baixo custo, competitividade para descarbonizar globalmente”, explicam as organizadoras.Cerca de 70% dos participantes do evento são de fora do Brasil e 30% brasileiros. O objetivo, segundo Luiza, é causar um impacto positivo para o país.“E talvez para colocar em contexto de COP, agora a gente tem essa história do mutirão. Acho que o BCS é, no fundo, uma forma de mutirão. Acho que é totalmente o que a gente faz aqui. Já vem fazendo há algum tempo", afirma. “Tentando fomentar coisas que vão ser ações. Então fazer essas conexões para fazer projeto, para fazer investimento, para, de fato, descarbonizar o Brasil e o mundo. Essa é a visão."
O aumento da temperatura global desafia os produtores rurais dos quatro cantos do planeta a se adaptarem a novas condições climáticas e conseguirem manter as suas especificidades – e não é diferente com os produtores de queijos franceses. Camembert, comté, brie, roquefort: o país se orgulha de fabricar mais de mil variedades de queijos, dos quais 46 se beneficiam da proteção de Denominação de Origem Controlada (DOC ou AOP, em francês). Mas este patrimônio cultural está ameaçado pelas mudanças do clima. Como evitar que a repetição das secas leve os queijos específicos dessas regiões a perderem o gosto, o odor e até a cor? Pesquisadores da região centro-sul da França se debruçaram sobre a questão.Um estudo do Instituto Nacional de Pesquisas sobre Agricultura, Alimentação e Meio Ambiente (INRAE) e a escola superior VetAgro Sup demonstrou os efeitos de um tempo mais quente e seco sobre o queijo cantal, fabricado há 2 mil anos nas montanhas do Maciço Central. Resultado: quanto menos acesso às vacas têm ao pasto natural da região, rico em diversidade de flora, mais empobrecido será o queijo produzido a partir do seu leite.As conclusões servem de alerta para todo o setor no país, indica o pesquisador Matthieu Bouchon, que coordenou o estudo. "No sul da França, os impactos são muito mais fortes que no norte, onde chove mais. Mas o impacto também pode ser muito diferente em função da flora de cada lugar: temos espécies diferentes até em áreas territoriais pequenas", observa. "No centro da França, por exemplo, encontramos dezenas e dezenas de tipo de floras, e cada uma é afetada de uma forma diferente", explica o pesquisador.Aumento de secas reduz o pasto nas montanhasA partir dos anos 1980, o país viu o número das ondas de calor triplicar, além de se tornarem mais longas. Ao mesmo tempo, as chuvas durante o verão caíram de 10% a 20%, segundo levantamento do instituto Météo France.No Maciço Central, algumas áreas tiveram uma queda de até 40% das precipitações anuais, como foi o caso de 2022, ano de uma seca recorde. Estas alterações afetam diretamente a vegetação da montanha: algumas espécies migram para áreas mais altas e os pastos chegam a reduzir pela metade, com impacto direto na criação de gado e ovinos.Matthieu Bouchon explica de que modo essas mudanças na alimentação dos animais afetam, por sua vez, os queijos: "É diretamente ligado às moléculas presentes nos campos e flores. As do tipo terpeno são ingeridas pela vaca e transmitidas ao leite e, depois, aos queijos. São moléculas aromáticas, que dão o odor às flores e atraem os polinizadores, e que dão também gosto e odor aos queijos", detalha o pesquisador. "Outras moléculas, os carotenoides, estão presentes na grama fresca e fornecem a cor amarela ao queijo", complementa.Leia tambémRoquefort, queijo preferido de reis franceses, celebra 100 anos fiel a origens medievaisQuanto mais milho na alimentação, mais o queijo é 'pobre'Para contornar a menor abundância de pasto, alguns agricultores passaram a misturar ou aumentar as quantidades de milho e feno na alimentação do gado. O problema, mostrou a pesquisa, é que quanto menos pasto variado as vacas consomem, mais insosso será o queijo, tanto do ponto de vista gustativo quanto nutritivo. O cantal feito com o leite de vacas que só se alimentaram de milho tinha menos sabor, odor e cor, além de menos ômega 3."Eu espero que isso não nos leve a ter menos diversidade gastronômica. Sabemos que os produtores estão se adaptando, mas com estratégias diferentes", diz Bouchon."Por enquanto, o desenvolvimento do milho ainda é marginal nas montanhas e está ocorrendo mais entre os produtores de leite, e não de queijo, que tem características mais complexas. Mas não podemos excluir que em dez ou 20 anos, essas práticas não se disseminarão – e é por isso que é importante fazer esse tipo de pesquisa hoje", argumenta.O estudo, feito com a participação de representantes do setor, foi publicado na revista científica Journal of Dairy Science. Uma segunda parte da pesquisa, ainda em fase de análises, deverá esclarecer de que forma as mudanças na alimentação das vacas afeta a microbiologia intestinal dos consumidores.
O Collège de France, uma das instituições de ensino superior e pesquisa científica mais prestigiosas da França, recebeu nesta terça-feira (29) o único imortal indígena da Academia Brasileira de Letras, o escritor Ailton Krenak. O filósofo emocionou a plateia de acadêmicos com uma visão singular sobre a crise climática e a destruição dos recursos naturais do planeta – e criticou a realização da próxima Conferência do Clima da ONU na Amazônia, em novembro (COP30). O escritor alertou que, diante das evidências científicas sobre o impacto das ações humanas sobre o clima, como o uso combustíveis fósseis, a humanidade “está experimentando a imensa perda da qualidade da experiência de estar vivo”. Segundo ele, “não estamos só ameaçados pelo clima, mas pela imobilidade”.Depois do evento, a jornalistas, Krenak foi mais direto sobre os projetos do governo brasileiro de abrir novas frentes de petróleo na foz do rio Amazonas. "É uma espécie de divórcio da realidade o governo brasileiro, ou qualquer outro governo regional, insistir na exploração de fósseis, de petróleo”, afirmou.O filósofo lembrou que, na última Conferência do Clima, no Azerbaijão, o presidente do país anfitrião considerou que o gás e o petróleo são “um presente de Deus”. "Enquanto a gente viver essa ideia simplória e oportunista de recursos naturais que Deus deu, nós vamos entrar pelo cano”, disse Krenak.O escritor lamentou que os acordos relacionados à proteção do meio ambiente "estejam todos derretendo”, e criticou a decisão do Brasil e a ONU de fazer a próxima COP em uma cidade amazônica."Eu acho que a COP30 vai ser um ônus. Ela vai exigir muito investimento, vai gastar muita coisa para promover uma conferência que podia acontecer online. Não precisava ser na Amazônia”, alegou. "Como é que vai você dizer que uma conferência vai ser boa se o legado imediato que ela deixa é a perda da qualidade de vida dos habitantes e da liberdade desses habitantes de se organizarem?”, avaliou, antes de afirmar que, com a ausência dos Estados Unidos na mesa de negociações, a conferência "vai ser um grande evento de empresários". "Corporações e empresários vão ganhar muito com a COP30, e populações locais vão perder tudo”, comentou.Cogitar 'outros mundos'Na sua palestra, Krenak incitou os presentes a "cogitarem outros mundos, além dessa experiência quase terminal que nós passamos a experimentar no século 21". Segundo ele, “estamos provocando o colapso do mundo que nós habitamos, o seu empobrecimento, e não estamos sendo capazes de cogitar outros”.Nestes outros mundos, que o escritor reporta da floresta, o modo de vida e os hábitos de consumo dos centros urbanos não são mais o foco. "Nós somos a presença mais efêmera da Terra, e estamos causando um dano irreparável a outras formas de vida, como se nós tivéssemos a Terra à nossa disposição”, constatou.Para atender à cada vez mais consumo e ocupação de espaços “vazios” do planeta, a humanidade passou a “comer a Terra”, disse Krenak, parafraseando seu colega yanomami Davi Kopenawa."Se nós olharmos para o desaparecimento de rios, de florestas, nós vamos ver que a escala é suficientemente grande para incomodar e nos por diante da pergunta de quanto nós ainda podemos comer da Terra”, insistiu.'Florestania' e 'floricidade'O filósofo brasileiro, nascido em Minas Gerais e eleito imortal em 2023, trouxe ao público seus conceitos de "florestania" (da junção de “floresta” com "cidadania") e "floricidade" ("floresta" e “cidade”). Em plena capital francesa, erguida sobre pedras e concreto e que hoje briga para devolver os espaços verdes aos seus moradores, as palavras de Krenak inspiram."Na maioria das cidades, jazem os rios debaixo das calçadas e estruturas que vão erigindo essa paisagem tão atraente que são as cidades. Como pensar uma floricidade? Como pensar num lugar onde um rio e uma floresta possam conviver com essa nossa disposição para nos socializarmos e reunirmos em espaços tão acolhedores e seguros que são as cidades?”, indagou.
A proteção da natureza e do meio ambiente perde um dos seus defensores mais influentes: o papa Francisco colocou a crise ecológica no foco da sua liderança da Igreja Católica. As mensagens do pontífice em favor da preservação do planeta, amparadas pela ciência, ecoaram muito além dos 1,4 bilhão de fiéis no mundo. Lúcia Müzell, da RFI em ParisDos novos paradigmas conceituais para alertar sobre a destruição do planeta à primeira viagem de um papa à Amazônia, passando pela valorização inédita dos povos indígenas, Francisco incorporou na liturgia cristã as constatações da ciência sobre o aquecimento global e os seus efeitos devastadores nas populações, principalmente as mais vulneráveis. No mesmo ano em que seria assinado o Acordo de Paris sobre o Clima, em 2015, o papa publicou a Carta Encíclica Laudato Si, na qual introduziu o termo "ecologia integral”, a interconexão entre os sistemas sociais e naturais. Para ele, a humanidade é uma parte de um ecossistema mais amplo – e as suas ações afetam o ambiente.O pontífice argentino multiplicou os apelos para que homens e mulheres cuidassem melhor da “nossa casa comum”, a Terra. “A humanidade perde uma grande liderança que buscava sempre nos sensibilizar para o cuidado da casa comum e de nos recordar que tudo está interligado: uma coisa que acontece na região amazônica vai ter consequências no sudeste do Brasil, no sul da América do Sul, mas também na Europa”, afirma o padre jesuíta Adelson Araújo dos Santos, professor de Teologia da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.“Ele mostra que isso está intrinsecamente ligado com a nossa fé, na medida em que Deus é o criador de tudo e nós não somos proprietários de nada: somos meros administradores e devemos cuidar bem da obra de Deus”, explica ele, segundo a fé católica.Proximidade com a ciênciaO cientista Virgilio Viana, superintendente da Fundação Amazônia Sustentável (FAS), foi o primeiro brasileiro a integrar a Pontifícia Academia de Ciências Sociais do Vaticano, um seleto grupo de especialistas – entre eles, 35 prêmios Nobel – que orientam o papa sobre diversos ramos da ciência, incluindo os ambientais. Doutor em Biologia por Harvard e pós-doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade da Flórida, Viana teve diversas oportunidades de debater sobre a crise climática com Francisco.“O papa fala não apenas da ecologia integral como fala da necessidade de repensarmos a economia. Não é uma mensagem apenas ambientalista: é um pensamento muito ancorado numa visão holística, sistêmica, que percebe, a partir da visão da ecologia integral, que os nossos hábitos de consumo, o nosso estilo de vida, estão conectados com a crise global”, indica. “Nós precisamos de uma profunda reflexão, enquanto indivíduos e enquanto atores econômicos e políticos, que temos impacto, com as nossas decisões, no futuro do planeta”, complementa.Oito anos depois da Carta Encíclica Laudato Si, Francisco voltou a se aprofundar no tema com a Exortação Apostólica Laudate Deum, esta específica sobre as mudanças climáticas. Jorge Bergoglio demonstrou, mais uma vez, o seu apreço pela ciência, observa o padre Adelson.“Ele se preocupou em chamar o mundo da ciência para escutá-lo, e isso gerou, no meio científico, uma admiração pela sua pessoa. Eu acredito que isso é algo para a gente não perder. É uma lição que fica: a nossa fé não é fechada em si mesma, ela é dialogal”, analisa o teólogo.O pontífice costumava enviar mensagens aos participantes das conferências das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COPs) e chegou a planejar ir pessoalmente à COP28 em Dubai, em 2023, mas teve de cancelar a viagem por razões de saúde. Em sua última mensagem aos fiéis brasileiros, em fevereiro, na ocasião do lançamento da Campanha da Fraternidade sobre a ecologia integral, mencionou a importância da Conferência de Belém, em novembro. Francisco desejou que, no evento, "as nações e os organismos internacionais possam comprometer-se efetivamente com práticas que ajudem na superação da crise climática e na preservação da obra maravilhosa que Deus nos confiou e que temos a responsabilidade de transmitir às futuras gerações".Sínodo para a Amazônia e valorização indígenaA noção da proteção do planeta está longe de ser nova na Igreja: foi introduzida por São Francisco de Assis, inspirador do papa argentino, há mais de 800 anos. Pouco a pouco, o tema ganhou importância após a doutrina social da Igreja, no fim do século 19. Com a publicação de Fides e Ratio (“Fé e Razão”), em 1998, João Paulo II pedia que a fé fosse amparada pela ciência, e vice-versa.Mas foi sob Francisco que a temática ganhou uma nova dimensão, como quando anunciou a realização do Sínodo para a Amazônia e viajou, pela primeira vez na história da Igreja, para o coração da floresta. Em Puerto Maldonato, no Peru, escutou os “guardiões da floresta”.“Ele pôde ouvir de diversos povos indígenas a visão deles sobre a natureza, a preservação da floresta e a ação do ser humano. Eles são os primeiros a sofrerem quando veem seus rios poluídos, diminuírem os seus peixes e verem suas florestas incendiarem”, salienta Araújo dos Santos, ligado à arquidiocese de Manaus e autor de “Os passos espirituais do caminho sinodal”, sobre o legado do evento. “Há uma sabedoria, de fato, nas tradições dos povos originários que o papa Francisco percebeu, com muita sensibilidade e uma abertura imensa.”No momento em que a Igreja se prepara para eleger um sucessor, Virgilio Viana avalia que, apesar do fortalecimento do discurso negacionista em diversos países e governos, o Vaticano não deverá recuar neste caminho.“Eu não vejo uma ruptura. A própria doutrina de Francisco se ancora no pensamento de papas que o antecederam, então eu acredito que o próximo papa dará continuidade a esse pensamento, mesmo porque ele é baseado não só em ciência, como na leitura da Bíblia”, destaca o superintendente da FAS. “No Gênesis diz que Deus não dá ao homem o direito de explorar a natureza.”Padre Adelson Araújo dos Santos relembra, entretanto, que dentro da própria Igreja, as palavras de Francisco sobre o “pecado ecológico” causaram rejeição da ala mais conservadora da Cúria. Os críticos alegavam que Francisco “gostava mais de defender as árvores do que as almas”, relata o professor da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.“Ainda temos uma tarefa muito grande de sensibilização. A Laudato Si está completando 10 anos, mas em muitos lugares, em paróquias e meios cristãos católicos, ela não chegou ainda, porque não há a sensibilidade e uma palavra que o papa usa nas suas encíclicas, o processo de conversão”, detalha o teólogo. “Nestes casos, falta ver a dimensão do pecado presente quando você causa a destruição do meio ambiente e dos recursos naturais. Temos que realmente mudar os nossos paradigmas: não podemos mais ficar num modelo de desenvolvimento que esquece que tudo parte de uma harmonia”, observa.
A sete meses da Conferência da ONU sobre as Mudanças Climáticas em Belém, o presidente da COP30, o embaixador brasileiro André Corrêa do Lago, reconhece que a percepção da agenda climática por governos, empresas e até populações “está diferente do que gostaria”. Mas o contexto internacional desfavorável para o evento mais importante do ano na temática ambiental também trouxe reflexões sobre a quebra da confiança nas COPs – e um mea culpa: “a realidade é que nós não estamos sendo convincentes”. Lúcia Müzell e Jeanne Richard, da RFI em ParisO experiente diplomata ressalta a importância de a conferência ser capaz de transformar os discursos e acordos em atos concretos. “Se esse tema diminuiu de importância na agenda mundial, é também porque alguma coisa nós não estamos fazendo direito”, disse, em entrevista à RFI. “Devemos ajustar o que estamos falando sobre a mudança do clima, para não continuarmos a assustar as pessoas sem uma solução.”Apesar do contexto internacional desfavorável, com guerras em curso, o multilateralismo em crise e a saída do maior emissor histórico de gases de efeito estufa, os Estados Unidos, da mesa de negociações, Corrêa do Lago descarta a hipótese de a COP de Belém terminar em retrocessos. “O que já foi assinado deve ser realizado, deve ser implementado”, frisou.O Brasil presidirá a conferência em novembro sob o telhado de vidro dos planos de aumentar da produção de petróleo nas próximas décadas – apesar de os 196 países membros da Convenção do Clima terem concordado, em 2023, em “se afastar” dos combustíveis fósseis, os maiores responsáveis pelo aquecimento anormal do planeta. “Não há nenhuma dúvida de que as energias fosseis são o principal problema que nós devemos enfrentar”, afirmou o embaixador. “Algumas coisas nós podemos estar fazendo errado, mas nós estamos fazendo muitíssimas coisas certas. Eu acredito que sim, há uma capacidade do Brasil de mostrar o rumo para a maioria dos outros países”, alegou.Leia abaixo os principais trechos da entrevista, realizada por videoconferência nesta terça-feira (8).RFI: 2025 marca os dez anos do Acordo de Paris. Desde o começo, a expectativa era muito alta para essa COP 30, sobre a ambição climática que a gente vai conseguir chegar. Mas o contexto atual é muito desfavorável, com uma escalada de guerras e do discurso negacionista, retrocessos evidentes na agenda ambiental em diversos países. Uma sombra de Copenhague paira sobre Belém? André Corrêa do Lago: A gente não pode analisar as circunstâncias, que são muito diferentes. Eu acho que Copenhague foi um caso muito especial e as circunstâncias internacionais, em princípio, eram até favoráveis em 2009. Eu acredito que nós estamos tendo hoje uma certa tendência a um retrocesso, mas nós temos que analisar por que desse retrocesso.Quando você tem uma preocupação com guerras ou com eleições, todos esses elementos são extremamente importantes na política e nós podemos até entender, mas a realidade é que isso está comprovando que a mudança do clima ainda não adquiriu a dimensão, que deveria ser natural, de que ela está por cima de todos esses elementos. Você não pode escolher ou guerra, ou crise ou mudança do clima. A mudança do clima está aí e vai continuar, portanto a gente não pode tapar o sol com a peneira e não ver que as circunstâncias estão cada vez mais graves.Eu acho que é um desafio enorme, mas também é um desafio para nós renovarmos o discurso pró-clima para uma maneira mais convincente, porque a realidade é que nós não estamos sendo convincentes. Se esse tema diminuiu de importância na agenda mundial, é também porque alguma coisa nós não estamos fazendo direito. Nós temos que melhorar a nossa comunicação sobre a relevância dessa agenda.RFI: Menos de 10% dos países da Convenção Quadro cumpriram o calendário previsto e entregaram as suas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) em fevereiro, como previsto. Como o senhor qualifica esse impasse? É um mau sinal para o sucesso da COP30?ACL: Teria sido muito melhor se mais países tivessem apresentado, não há a menor dúvida. Mas a verdade é que o prazo foi estendido para setembro. Houve um entendimento de que estava muito complexo para vários países apresentarem as suas NDC, por motivos diversos.A União Europeia, por exemplo, estava um pouco ligado à questão das eleições. Vários países estavam muito ligados a questões técnicas. A ideia é que os países possam apresentar a melhor NDC possível e a mais ambiciosa possível. Eu acho que o importante é isso, que favoreça a qualidade das NDCs que estão sendo apresentadas.RFI: Para o senhor, o que vai ser um sucesso da COP30?ACL: Nós ainda não estamos declarando o que nós consideramos que deverá ser um sucesso da COP30. Não há dúvida de que as NDC são um elemento importante. Só que as NDC dos países são voluntárias: cada país apresenta a sua de acordo com aquilo que considera ser possível. Então, você não pode pressionar os países ou alegar que os países não estão fazendo alguma coisa. Se algo foi decidido, eles estão fazendo o que foi decidido.Nós temos que aguardar essas NDCs e, uma vez que elas forem apresentadas, nós vamos ser capazes de fazer um cálculo de quão distantes nós ainda estamos do objetivo de 1,5ºC [limitar o aquecimento do planeta a no máximo 1,5ºC até o fim deste século]. As Nações Unidas têm uma forma de análise das NDCs e o resultado final vai ser apresentado e discutido.Agora, se nós não estamos atingindo o objetivo de temperatura que estava no Acordo de Paris, nós temos que sentar e discutir como é que nós podemos aumentar a ambição. Não há a menor dúvida de que alguns países gostam muito de falar de ambição, mas a realidade é que a maioria dos países em desenvolvimento dizem que eles só podem falar de ambição se houver recursos financeiros, porque incorporar clima é um peso adicional ao esforço de desenvolvimento.Esse debate se arrasta desde o momento que a gente negociou essa Convenção do Clima, que foi assinada em 1992, portanto é um tema tão complexo que nós ainda não conseguimos encontrar uma solução. Mas eu acredito que ainda há um desejo e uma convicção de que é por via do multilateralismo que nós podemos encontrar a melhor maneira de cooperar.Acho que seria um enorme sucesso se a COP30 apresentar soluções conviventes em todas as áreas – e acho que isso é muito possível, porque temos soluções, as tecnologias estão progredindo de forma extraordinária e temos ideias adaptadas a circunstâncias muito distintas. Há muitos caminhos e cada país tem o seu – num grande país como o Brasil, cada região tem o seu. Devemos respeitar isso, porque não se pode impor soluções que, no final, sejam caras demais ou custem muito caro politicamente. É muito importante para as democracias poder ganhar eleições, então devemos garantir que esse discurso será seguido de ações e demonstrações do que estamos defendendo.RFI: A última COP, em Baku, foi frustrante para muitos países em desenvolvimento, que esperam financiamento para promover a sua transição. Como providenciar os bilhões de dólares necessários, afinal sem este dinheiro, alguns países podem ser obrigados a apresentar planos climáticos pouco ambiciosos ou até nem mesmo apresentar um plano?ACL: O financiamento é um tema absolutamente central porque, na maioria dos países em desenvolvimento, existe uma acumulação de diversas dimensões do desenvolvimento ao mesmo tempo – educação, saúde, infraestruturas, transportes. O combate às mudanças climáticas se adiciona a tudo isso. É mais do que justo que os países que puderam se desenvolver de forma muito mais progressiva e organizada, e que são responsáveis pela acumulação de CO2 na atmosfera, forneçam os recursos para estes países em desenvolvimento poderem se desenvolver tendo a questão do clima no centro dos seus modelos de desenvolvimento.RFI: Os países desenvolvidos providenciarão este dinheiro sem os Estados Unidos?ACL: Quem está muito preocupado com a ausência dos Estados Unidos são os outros países desenvolvidos, porque se forem somente os países desenvolvidos que deverão providenciar os recursos, a saída da maior economia do mundo desse pool torna a equação mais complexa. Mas não é só isso.Nós precisamos olhar a questão do financiamento climático de maneira muito mais vasta. A decisão de Baku inclui o esforço da presidência brasileira e da presidência do Azerbaijão de passar de US$ 300 bilhões por ano para US$ 1,3 trilhão. São números absolutamente assustadores, mas que dão a dimensão do impacto que o clima está tendo na economia mundial.Esta proposta, que deve ser assinada por Mukhtar Babayev [presidente da COP29] e eu, é uma proposta de como poderemos passar de A a B de forma convincente. Estamos trabalhando neste assunto de forma muito séria, porque pensamos que não podemos trabalhar apenas com fundos especiais para o clima. Nós devemos fazer com que o clima esteja no centro de todas as decisões de desenvolvimento, de investimentos e de finanças. Isso exige que mudemos muito a nossa forma de pensar os investimentos e o financiamento. Acho que temos um bom caminho a percorrer, mas espero que seremos capazes de apresentar alguma coisa que seja positiva e, ao mesmo, tempo realista.RFI: A cada COP, existe uma pressão muito grande para aumentar o que já se tem, mas manter o que foi conquistado é também um desafio. O senhor trabalha com a ideia, por exemplo, de encarar pressões para que o compromisso dos países de se afastarem [“transitioning away”] dos combustíveis fósseis saia do texto, por exemplo?ACL: Não, não, não. O “transitioning away” já foi aprovado em Dubai por todos os países membros do Acordo de Paris. Eu acho que é algo que já está decidido – o que não está é as várias maneiras como nós podemos contribuir, cada país à sua maneira, para essa transição. Mas o que já foi assinado deve ser realizado, deve ser implementado. Não há nenhuma dúvida de que as energias fosseis são o principal problema que nós devemos enfrentar.Nós temos uma crise política, mas também de confiança no proces
Este é o canto de pouso do falcão peneireiro das torres, uma ave de rapina pequena, mas que conseguiu paralisar as operações de um grande parque eólico no sul da França. A justiça francesa acaba de condenar as operadoras da usina pela morte de milhares de pássaros e aves, inclusive espécies ameaçadas. É a primeira vez que os gestores de um parque eólico são condenados em um processo penal, depois que ao menos 160 pássaros, morcegos e falcões desta espécie, protegida na França, morreram ao se chocarem contras hélices das turbinas eólicas, na cidade de Aumelas.A companhia EDF Renouvelables e nove filiais foram sentenciadas a pesadas multas, que chegam a € 2,5 milhões, e a cessar as atividades de 31 eólicas por quatro meses, com efeito imediato em abril. É neste mês que se inicia o período de migração dos bandos da África até a Europa, onde os animais procriam da primavera até o fim do verão. O processo foi movido por iniciativa da organização France Nature Environnement. Em um relatório sobre o assunto, a Liga de Proteção dos Pássaros (LPO) afirma que uma turbina mata em média sete animais voadores por ano – só na França, 10 mil eólicas estão em operação, o que significa que a mortalidade dos pássaros e aves se tornou um problema ambiental para o setor.Geoffroy Marx, autor do estudo, explica que os falcões são particularmente vulneráveis: eles se acostumaram a voar em volta das turbinas para buscar alimento. “Em geral, toda a área em volta das eólicas é limpa e os pequenos mamíferos que circulam no solo ficam bastante visíveis. Isso é muito prático para as aves de rapina caçarem”, complementa.Hélices 'invisíveis' para os pássarosOs falcões não conseguem diferenciar bem as pás das turbinas das nuvens do céu – as estruturas são pintadas de branco justamente para se camuflarem melhor no ambiente e causarem menos impacto visual aos humanos que habitam nos arredores. “Os pássaros detectam mal o contraste. As eólicas se diferenciam muito pouco do céu, na visão do pássaro”, diz. “Alguns pesquisadores defendem que ao menos uma das pás seja pintada de preto, mas ainda não se tem provas de que isso funcionaria. Por enquanto, é uma hipótese de solução.”As eólicas são equipadas com um sistema de detecção de voadores, mas segundo Marx, os aparelhos não funcionam adequadamente: a resposta da máquina é lenta demais em relação à velocidade dos pássaros no ar. “Em geral, são câmeras que detectam a aproximação dos pássaros e acionam um sinal acústico para afastá-los, ou levam à paralisação das máquinas. Porém, infelizmente, o que vemos hoje é que o sistema não é muito eficaz”, lamenta o pesquisador.Riscos à biodiversidade e comunidadesA energia eólica é uma das chaves da transição para fontes limpas, mas a sua instalação também têm sido alvo de críticas pelos danos à biodiversidade, conforme o local onde as usinas são instaladas. A militante sueca Greta Thunberg já promoveu protestos contra a construção de uma usina eólica nas montanhas da Noruega.No Brasil, indígenas, pequenos agricultores e comunidades locais promovem regularmente manifestações contra a multiplicação de centrais no nordeste do país.O caso francês ilustra as contradições entre a proteção da natureza e a necessária transição energética, fundamental para combater a crise climática, salienta Geoffroy Marx. “Temos que encontrar um compromisso, afinal será necessário liberar espaços para produzir a energia que precisaremos todos amanhã. Vai ser preciso conciliar os dois”, indica. Leia tambémIndústria europeia de painéis solares vive momento crítico, em pleno ‘boom’ da transição energética
Nos anos 2010, em pleno boom da conscientização ambiental, a moda “ecologicamente correta” da apicultura urbana invadiu as grandes cidades europeias. Uma certa competição entre grandes empresas e monumentos que tinham ou não produção de mel nos seus telhados chegou até a se criar. Mas, hoje, a tendência se inverteu: prefeituras chegam a proibir a instalação de novas colmeias. Lúcia Müzell, da RFI em ParisEstudos indicam que a expansão desmedida da prática é prejudicial à biodiversidade – não apenas afeta a variedade de espécies de abelhas, como também a das flores e outras plantas polinizadas por elas. Em Paris, por exemplo, o número de colmeias amadoras ou semiprofissionais disparou em uma década, passando de uma centena para mais de 2,2 mil, segundo dados de 2021 do Ministério da Agricultura.A bióloga Isabelle Dajoz, pesquisadora do Instituto de Ecologia e Ciências Ambientais de Paris, estudou o impacto desta multiplicação das colônias. "As pessoas acreditam que a abelha é um símbolo da biodiversidade e do bom funcionamento dos ecossistemas, mas ela é apenas uma espécie de polinizador entre outras. Quando dizem que vamos salvar as abelhas colocando colmeias por todo o lado, é como se disséssemos que 'para salvar os pássaros, vamos espalhar galinhas em todos os lugares’”, compara.Só na França, existem mais de 1.000 espécies de abelhas – o problema é que apenas uma, a Apis mellifera, também conhecida como abelha europeia, é usada em massa na apicultura, pela sua alta resistência e produtividade."Quanto mais densidade de colmeias de abelhas europeias temos, menos haverá polinizadores selvagens, incluindo outras espécies de abelhas, mas também borboletas, moscas e outros insetos. Isso sugere uma competição pelo acesso às flores, portanto acesso à comida: o pólen e o néctar”, afirma a pesquisadora. "Se tudo, ou quase, for devorado pelas abelhas europeias, podemos supor que teremos um efeito na densidade das populações de abelhas selvagens."Superpopulação de uma única espécie de abelhaDa Ópera de Paris ao Grand Palais, passando por restaurantes chiques e grandes lojas de departamento, todo mundo passou a produzir o seu mel exclusivo, com a desculpa fazer um gesto pelo planeta – um argumento que revolta Hugues Mouret, diretor científico da organização Anthropologia, que sensibiliza sobre a proteção dos insetos."Três ou quatro colmeias em um dado espaço não tem problema. Com 50, todo o alimento disponível naquela área é capturado”, lamenta ele, ao explicar que apenas uma colônia de abelhas europeia consome em três meses o equivalente ao que comem 100 mil abelhas selvagens. A existência de mais de três colmeias por quilômetro quadrado já atrapalha a atividade polinizadora dos insetos. Hoje, a média francesa é de 17 colônias, segundo ele."Mas nada disso importa para as pessoas que tentam vender esse modelo econômico de ‘vejam, agora temos colmeias aqui, estamos salvando a biodiversidade e você tem a chance de ter um mel local’. Os preços podem ser indecentes, chegam a 150 euros o quilo, o que é um completo delírio”, salienta.Paris queria ser a 'capital das abelhas'Diante dos alertas de cientistas e organizações naturalistas, prefeituras começaram a recuar. Lyon e Nantes acabaram com as novas autorizações de colmeias urbanas e têm buscado diminuir o número das já instaladas – com o apoio de entidades de apicultores profissionais, preocupados com a qualidade inferior do mel devido à queda da diversidade de polinizadores.Paris – que em 2016 havia lançado um plano para transformar na “capital das abelhas” – parou simplesmente de comunicar sobre o assunto."É de bom senso que precisamos. Não é uma questão de proibir nem de dizer que não gostamos das abelhas melíferas – eu mesmo sou apicultor amador. Mas se nós continuamos a só ver as coisas pelo prisma da produção alimentar, vamos destruir os espaços que nos rodeiam – e dos quais dependem as nossas produções alimentares, que precisam de diversidade”, indica Mouret.“Quando compreendermos isso e deixarmos um espaço decente para a vida selvagem, ao abrigo das atividades humanas, as coisas serão bem diferentes. Todos ganharemos."Maior ameaça são agrotóxicosO naturalista ressalta, entretanto, que a apicultura urbana está longe de ser o maior problema das abelhas: as verdadeiras ameaças à sua sobrevivência é a poluição, em especial por agrotóxicos, e a destruição dos seus habitats naturais.Neste sentido, a "pausa" decidida pelo governo francês para a adoção do plano de redução de produtos fitossanitários, sob pressão dos principais sindicatos agrícolas, representa um retrocesso importante para a conservação dos insetos. O plano visa o corte pela metade do uso de agrotóxicos no país até 2030 e a aceleração das pesquisas por soluções alternativas na agricultura, menos prejudiciais ao meio ambiente. Mas, em meio a sucessivas revoltas de agricultores, o governo cedeu e suspendeu o projeto.Os recuos também têm ocorrido em nível europeu, por medidas da Comissão Europeia, em meio à ascensão da extrema direita no bloco.Leia tambémAgrotóxicos proibidos na UE voltam à França em alimentos importados de países como o Brasil




o áudio do entrevistado tá péssimo, desisti de ouvir