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"A Cidade e as Serras", Capítulo XI, de Eça de Queirós

"A Cidade e as Serras", Capítulo XI, de Eça de Queirós

Update: 2021-04-24
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Capítulo XI, em audiolivro, do romance “A Cidade e as Serras” de Eça de Queirós.

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“A Cidade e as Serras” é um desenvolvimento do conto “Civilização”, cuja publicação em livro ocorreu em 1901, já depois da morte do autor. No romance é relatada a história de Jacinto, tendo como narrador José Fernandes, um amigo fraternal. Jacinto nasceu e viveu toda a sua vida num palácio dos Campos Elísios, em Paris. Apesar de rodeado de conhecimento, de tecnologia e de luxo, vive aborrecido e decide regressar a Tormes, na região do Douro.


TRANSCRIÇÃO

XI


No dia que seguiu estas largas caridades recolhi a Guiães. E, desde então, tantas vezes trotei por aquelas três léguas entre a nossa e a velha alameda dos Jacintos, que a minha égua, quando a desviava dessa estrada familiar, conduzindo-a a uma cavalariça familiar (onde ela privava com o garrano do Melchior), relinchava de pura saudade. Até a tia Vicência se mostrava vagamente ciumenta daquela Tormes, para onde eu sempre corria, daquele Príncipe de quem incessantemente celebrava o rejuvenescimento, a caridade, os pitéus, e as quimeras agrícolas. Já um dia com um grão de sal e de ironia, o único que cabia num coração todo cheio de inocência, ela me dissera, movendo com mais vivacidade as agulhas da sua meia:


— Olha que te podes gabar! Até me tens feito curiosidade de conhecer esse Jacinto… Traze cá essa maravilha, menino!


Eu rira:


— Sossegue, tia Vicência, que o trago agora, para o dia dos meus anos, a jantar… Damos uma festa, haverá um bailarico no pátio, e vem aí toda essa senhorama dos arredores e até talvez se arranje uma noiva para o Jacinto.


E eu, com efeito, já convidara o meu Príncipe para este «natalício». E de resto, convinha que o senhor de Tormes conhecesse todos aqueles senhores das boas casas da serra… Sobretudo, como eu lhe dizia rindo, convinha que ele conhecesse algumas mulheres, algumas daquelas fortes raparigas dos solares da serra, porque Tormes tinha uma solidão muito monástica, e o homem, sem um pouco do Eterno Feminino, facilmente se enrudece e ganha uma casca áspera como a das árvores, na solidão.


— E esta Tormes, Jacinto, esta tua reconciliação com a Natureza, e o renunciamento às mentiras da Civilização é uma linda história… Mas, caramba, há aqui falta de mulheres!


Ele concordava, rindo, languidamente estendido na cadeira de vime:


— Com efeito, há aqui falta de mulher, com M grande. Mas essas senhoras aí das casas dos arredores… Não sei, mas estou pensando que se devem parecer com legumes. Sãs, nutritivas, excelentes para a panela — mas, enfim, legumes. As mulheres que os poetas comparam às flores são sempre as mulheres das cortes, das capitais, onde invariavelmente, desde Hesíodo e desde Horácio, se rendem os poetas… E evidentemente não há perfume, nem graça, nem elegância, nem requinte, numa cenoura ou numa couve… Não devem ser interessantes as senhoras da minha serra.


— Eu te digo… A tua vizinha mais chegada, a filha do D. Teotónio, com efeito, salvo o respeito que se deve à casa ilustre dos Barbedos, é um mostrengo! A irmã dos Albergarias, da Quinta da Loja, também não tentaria nem mesmo o precisado Santo Antão. Sobretudo se se despisse, porque é um espinafre infernal! Essa realmente é legume, e nem é nutritivo.


— Não! O espinafre, legume purgativo.


— Temos também a D. Beatriz Veloso… Essa é bonita… Mas, menino, que horrivelmente bem-falante! Fala como as heroínas do Camilo. Tu nunca leste o Camilo. E depois, um tom de voz que te não sei descrever, o tom com que se fala em D. Maria, em peças de sentimento. Tu nunca viste o Teatro de D. Maria. Enfim, um horror! E perguntas pavorosas. «Vossa Excelência, Senhor Doutor, não se delicia com Lamartine?» Já me disse esta, a desavergonhada!


— E tu?


— Eu! Arregalei os olhos… «Oh, Lamartine!» Mas, coitada, é uma excelente rapariga! Agora, por outro lado, temos as Rojões, as filhas do João Rojão, duas flores, muito frescas, muito alegres, com um cheiro e um brilho a sadio, e muito simples… A tia Vicência morre por elas. Depois há a mulher do dr. Alípio, que é uma beleza. Oh! uma criatura esplêndida! Mas, enfim, é a mulher do dr. Alípio, e tu renunciaste aos deveres da Civilização… Além de uma mulher muito séria, toda absorvida nos seus dois pequenos, que parecem dois anjinhos de Murillo… E quem… mais? Já agora, quero completar a lista do pessoal feminino. Temos a Melo Rebelo, de Sandofim, muito engraçada, com cabelo lindo… Borda na perfeição, faz doces como uma freira do Antigo Regime… Havia também uma Júlia Lobo, muito linda, mas morreu… Agora não me lembro mais. Mas falta a Flor da Serra, que é a minha prima Joaninha, da Flor da Malva! Essa é uma perfeição de rapariga.


— E tu, primo Zé, como tens tu resistido?


— Somos como irmãos, criados de pequeninos, mais acostumados e familiares que tu e eu… A familiaridade esbate os sexos. A mãe dela era a única irmã da tia Vicência, e morreu muito nova. A Joaninha, quase desde o berço que se criou em nossa casa, em Guiães. O pai é bom homem, o tio Adrião. Erudito, antiquário, coleccionador… Colecciona toda a sorte de coisas esquisitas, campainhas, esporas, sinetes, fivelas… Tem uma colecção curiosa. Ele há muito que deseja vir a Tormes, para te visitar… Mas, coitado, sofre da bexiga, não pode montar a cavalo. E a estrada da Flor da Malva aqui é impossível para carruagens…


O meu Príncipe espreguiçou longamente os braços estendido pela cadeira, sob a cheirosa sombra:


— Não, está claro, eu é que hei-de visitar teu tio, e a tia Vicência… Desejo conhecer os meus vizinhos da serra. Mas mais tarde, quando sossegar… Agora ando todo ocupado com o meu povo.


E com efeito! Jacinto agora era como um rei fundador de um reino, e grande edificador. Por todo o seu domínio de Tormes andavam obras, para o renovamento das casas dos rendeiros, umas que se consertavam, outras mais velhas, que se derrubavam para se reconstruírem com uma largueza cómoda. Pelos caminhos agora constantemente chiavam carros, carregados de pedra, ou de madeiras cortadas nos pinheirais.


Na taberna do Pedro, à entrada da freguesia, ia agora um desusado movimento, de vidraceiros, pedreiros e carpinteiros, todos contratados para as obras — e o Pedro, com as mangas da camisa cada vez mais arregaçadas, por trás do balcão, não cessava de encher os decilitros com uma vasta infusa.


Jacinto, que agora tinha dois cavalos, todas as manhãs cedo percorria as obras, com amor. E eu, inquieto, sentia outra vez latejar e irromper no meu Príncipe o seu velho, maníaco furor de acumular Civilização! O plano primitivo das obras era incessantemente alargado, embelezado. Nas janelas, que deviam ter apenas portadas, segundo o secular costume da serra, decidira pôr vidraças, apesar de o mestre de obras lhe dizer honradamente, que depois de habitadas um mês, não haveria casa com um só vidro. Para substituir as traves clássicas queria estucar os tectos — e eu via bem claramente que ele se continha, se retesava dentro do bom senso, para não dotar cada casa com campainhas eléctricas. Não me espantei mesmo, quando ele uma manhã me declarou que aquela porcaria da gente do campo provinha de eles não terem onde comodamente se lavar, e que por isso andava pensando em dotar cada casa com uma banheira. Descíamos nesse momento, com os cavalos à rédea, por um córrego precipitado e escabroso; um vento leve ramalhava nas árvores, um regato saltava ruidosamente entre as pedras. Eu não me espantei — mas realmente me pareceu que as pedras, o arroio, as ramagens e o vento se riam alegremente do meu Príncipe. — E além destes confortos, a que o João, mestre de obras, com os olhos loucamente arregalados, chamava «as grandezas», Jacinto meditava o bem das almas. Já encomendara ao seu arquitecto, em Paris, o plano perfeito de uma escola, que ele queria erguer, naquele campo da Carriça, junto à capelinha que abrigava «os ossos». Pouco a pouco, aí também criaria uma biblioteca, com livros de estampas, para entreter, aos domingos, os homens a quem já não era possível ensinar a ler. Eu vergava os ombros, pensando: «Aí vem a terrível acumulação das Noções! Eis o Livro invadindo a Serra!» Mas outras ideias de Jacinto eram tocantes, — e eu mesmo me entusiasmei, e excitei o entusiasmo da tia Vicência com o seu plano de uma creche, onde ele esperava ter manhãs muito divertidas vendo as criancinhas a gatinhar, a correr tropegamente atrás de uma bola. De resto, o nosso boticário de Guiães já estava apalavrado para estabelecer uma pequena farmácia em Tormes, sob a direção do seu aprendiz, um afilhado da tia Vicência, que tinha publicado um artigo sobre as festas populares do Douro no «Almanaque de Lembranças». E já fora oferecido o partido médico de Tormes, com um ordenado de seiscentos mil réis.


— Não te falta senão um teatro! — dizia eu, rindo a Jacinto.


— Um teatro, não. Mas tenho a ideia de uma sala, com projecções de lanterna mágica, para ensinar a esta pobre gente as cidades desse mundo, e as coisas de África, e um bocado de História.


Eh caramba! também eu me entusiasmei com esta ideia! — E quando a contei ao tio Adrião, o digno antiquário bateu, apesar do seu reumatismo, uma palmada tremenda na coxa. «Sim, senhor! Bela i

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