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"A Cidade e as Serras", Capítulo XIV, de Eça de Queirós

"A Cidade e as Serras", Capítulo XIV, de Eça de Queirós

Update: 2021-07-01
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Capítulo XIV, em audiolivro, do romance “A Cidade e as Serras” de Eça de Queirós.

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“A Cidade e as Serras” é um desenvolvimento do conto “Civilização”, cuja publicação em livro ocorreu em 1901, já depois da morte do autor. No romance é relatada a história de Jacinto, tendo como narrador José Fernandes, um amigo fraternal. Jacinto nasceu e viveu toda a sua vida num palácio dos Campos Elísios, em Paris. Apesar de rodeado de conhecimento, de tecnologia e de luxo, vive aborrecido e decide regressar a Tormes, na região do Douro.


TRANSCRIÇÃO

XIV

Ao outro dia, depois do almoço, eu e Jacinto montámos a cavalo para um grande passeio até à Flor da Malva, a saber de meu tio Adrião, e do seu furúnculo. E sentia uma curiosidade interessada, e até inquieta, de testemunhar a impressão que daria ao meu Príncipe aquela nossa prima Joaninha, que era o orgulho da nossa casa. Já nessa manhã, andando todos no jardim a escolher uma bela rosa chá para a botoeira do meu Príncipe, a tia Vicência celebrara com tanto fervor a beleza, a graça, a caridade e a doçura da sua sobrinha toda-amada, que eu protestei:

— Oh! tia Vicência, olhe que esses elogios todos competem apenas à Virgem Maria! A tia Vicência está a cair em pecado de idolatria! O Jacinto depois vai encontrar uma criatura apenas humana, e tem um desapontamento tremendo!

E agora, trotando pela fácil estrada de Sandofim, lembrava aquela manhã, no 202, em que Jacinto encontrara o retrato dela, no meu quarto, e lhe chamara uma lavradeirona. Com efeito, era grande e forte a Joaninha. Mas a fotografia datava do seu tempo de viço rústico, quando ela era apenas uma bela, forte e sã planta da serra. Agora entrava nos vinte e cinco, e já pensava, e sentia, — e a alma que nela se formara, afinara, amaciara, e espiritualizava o seu esplendor rubicundo.

A manhã, com o céu todo purificado pela trovoada da véspera, e as terras reverdecidas e lavadas pelos chuviscos ligeiros, oferecia uma doçura luminosa, fina, fresca, em que era doce, como diz o velho Eurípides ou o velho Sófocles, mover o corpo, e deixar a alma preguiçar, sem pressa ou cuidados. A estrada não tinha sombras, mas o sol descia muito de leve, e roçava com uma carícia quase alada. O vale por baixo parecia a Jacinto (que nunca ali passara) uma pintura da Escola Francesa do século XVIII, tão graciosamente nele ondulavam as terras verdes, e com tanta paz e frescura corria o risonho Serpão, e tão afáveis e prometedores de fartura e contentamento alvejavam os casais nas verduras ligeiras. Os nossos cavalos caminhavam num passo pensativo, gozando também a paz da manhã adorável. E não sei que plantazinhas silvestres e escondidas espalhavam um delicado aroma, que eu tantas vezes sentira, naquele caminho, ao começar o Outono.

— Que delicioso dia! — murmurou Jacinto. — Este caminho para a Flor da Malva é o caminho do Céu… Oh Zé Fernandes, de que é este cheirinho tão doce, tão bom…

Eu sorri, com certo pensamento:

— Não sei… É talvez já o cheiro do Céu!

Depois, parando o cavalo, apontei com o chicote para o vale:

— Olha, acolá, onde está aquela fila de olmos, e há o riacho, já são terras do tio Adrião. Tem ali um pomar, que dá os pêssegos mais deliciosos de Portugal… Hei-de pedir à prima Joaninha que te mande um cesto de pêssegos. E o doce que ela faz com esses pêssegos, menino, é alguma coisa de extraceleste. Também lhe hei-de pedir que te mande o doce.

Ele ria:

— Será explorar de mais a prima Joaninha.

E eu (porquê?) recordei e atirei ao meu Príncipe estes dois versos de uma balada cavalheiresca, composta em Coimbra pelo meu pobre amigo Procópio:

Manda-lhe um servo dizendo:

«Bem hajas dona formosa!»

E que lhe entregue um anel

E com um anel uma rosa.

Jacinto riu alegremente:

— Oh! Zé Fernandes, seria excessivo, logo, por causa de meia dúzia de pêssegos, e de um boião de doce.

Assim ríamos, quando apareceu, à volta da estrada, o longo muro da quinta dos Velosos, e depois a capelinha de S. José de Sandofim. E imediatamente piquei para o largo, para a taverna do Torto, por causa daquele vinhinho branco, que sempre, quando por ali a levo, a minha alma me pede. O meu Príncipe reprovou, indignado:

— Oh! Zé Fernandes, pois tu, a esta hora, depois do almoço, vais beber vinho branco?

— É um costumezinho antigo… Aqui à taverninha do Torto… Um decilitrinho… A almazinha assim mo pede.

E parámos, eu gritei pelo Manuel, que apareceu, rebolando na sua grossa pança, sobre as pernas tortas, com a infusa verde, e um copo.

— Dois copos, Torto amigo. Que aqui este cavalheiro também aprecia.

Depois de um pálido protesto, o meu Príncipe também tomou o seu copo, mirou o límpido e dourado vinho ao sol, provou, e esvaziou o seu copo, com delícia, e um estalinho de alto apreço.

— Delicioso vinho!… Hei-de querer deste vinho em Tormes… É perfeito.

— Hem? Fresquinho, leve, aromático, alegrador, todo alma!… Encha lá outra vez os copos, Torto amigo. Este cavalheiro aqui é o sr. D. Jacinto, o fidalgo de Tormes.

Então, de trás da umbreira da taverna, uma grande voz bradou, cavamente, solenemente:

— Bendito seja o Pai dos Pobres!

E um estranho velho, de longos cabelos brancos, barbas brancas, que lhe comiam a face cor de tijolo, assomou no vão da porta, apoiado a um bordão, com uma caixa a tiracolo, e cravou em Jacinto dois olhinhos de um brilho negro, que faiscavam. Era o tio João Torrado, o profeta da serra… Logo lhe estendi a mão, que ele apertou, sem despegar de Jacinto os olhos, que se dilatavam mais negros. E mandei vir outro copo, apresentei Jacinto, que corara, embaraçado.

— Pois aqui o tem, o senhor de Tormes, que fez por aí todo esse bem à pobreza.

O velho atirou para ele bruscamente o braço, que saía, cabeludo e quase negro, de uma manga muito curta.

— A mão!

E quando Jacinto lha deu, depois de arrancar vivamente a luva, João Torrado longamente lha reteve com um sacudir lento e pensativo, murmurando:

— Mão real, mão de dar, mão que vem de cima, mão já rara!

Depois tomou o copo, que lhe oferecia o Torto, bebeu com imensa lentidão, limpou as barbas, deu um jeito à correia que lhe prendia a caixa de lata, e batendo com a ponta do cajado no chão:

— Pois louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, que por aqui me trouxe, que não perdi o meu dia, e vi um homem!

Eu então debrucei a face para ele, mais em confidência:

— Mas, ó tio João, ouça cá! Sempre é certo você dizer por aí, pelos sítios, que el-rei D. Sebastião voltara?

O pitoresco velho apoiou as duas mãos sobre o cajado, o queixo de espalhada barba sobre as mãos, e murmurava, sem nos olhar, como seguindo a procissão dos seus pensamentos:

— Talvez voltasse, talvez não voltasse… Não se sabe quem vai, nem quem vem. A gente vê os corpos, mas não vê as almas que estão dentro. Há corpos de agora com almas de outrora. Corpo é vestido, alma é pessoa… Na feira da Roqueirinha quem sabe com quantos reis antigos se topa, quando se anda aos encontrões entre os vaqueiros… Em ruim corpo se esconde bom senhor!

E como ele findara num murmúrio, eu, atirando um olhar a Jacinto, para gozarmos aqueles estranhos, pitorescos modos de vidente, insisti:

— Mas, ó tio João, você realmente, em sua consciência, pensa que el-rei D. Sebastião não morreu na batalha?

O velho ergueu para mim a face, que se enrugara numa desconfiança:

— Essas coisas são muito antigas. E não calham bem aqui à porta do Torto. O vinho era bom, e Vossa Senhoria tem pressa, meu menino! A flor da Flor da Malva lá tem o paizinho doente… Mas o mal já vai pela serra abaixo com a inchação às costas. Dá gosto ver quem dá gosto aos tristes. Por cima de Tormes há uma estrela clara. E é trotar, trotar, que o dia está lindo!

Com a magra mão lançou um gesto para que seguíssemos. E já passávamos o cruzeiro, quando o seu brado ardente de novo ressoou, com cava solenidade:

— Bendito seja o Pai dos Pobres!

Direito, no meio da estrada, erguia o cajado como dirigindo as aclamações de um povo. E Jacinto pasmava de que ainda houvesse no reino um sebastianista.

— Todos o somos ainda em Portugal, Jacinto amigo! Na Serra ou na Cidade cada um espera o seu D. Sebastião. Até a lotaria da Misericórdia é uma forma de sebastianismo. Eu todas as manhãs, mesmo sem ser de nevoeiro, espreito, a ver se chega o meu. Ou antes a minha, porque eu espero uma D. Sebastiana… E tu, felizardo?

— Eu? Uma D. Sebastiana? Estou muito velho, Zé Fernandes… Sou o último Jacinto, Jacinto ponto final… Que casa é aquela com os dois torreões?

— A Flor da Malva.

Jacinto tirou o relógio:

— São três horas. Gastámos hora e meia… Mas foi um belo passeio, e instrutivo. É lindo este sítio.

Sobre um outeirinho, afastada da estrada por arvoredo, que um muro cerrava, e dominando, a Flor da Malva voltava para oriente e para o Sol a sua longa fachada com os dois torreões quadrados, onde as janelas, de varanda, eram emolduradas em azulejos. O grande portão de ferro, ladeado por dois bancos de pedra, ficava ao fundo do terreirinho, onde um imenso castanheiro derramava verdura e sombra. Sentado sobre as suas fortes raízes um pequeno esperava segurando um burro pela arreata.

— Está por aí o Manuel da Porta?

— Ainda agora subiu pela alameda.

— Bem, empurra lá o portão.

E subimos, por uma curta avenida de velhas

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