Canto da Poesia #28: Aniversário

Canto da Poesia #28: Aniversário

Update: 2024-08-12
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O Canto da Poesia Nós Na Fita é um programa destinado a leitura de poemas, textos e letras de músicas com o objetivo de transmitir, através das palavras e da musicalidade, uma mensagem para o nosso ouvinte, através da curadoria dos nossos jornalistas.


Nesta semana, o aniversariante do dia Leonardo Sá locutou "Aniversário", de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa (1888-1935). Confira!




"No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,


Eu era feliz e ninguém estava morto.


Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,


E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,


Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,


De ser inteligente para entre a família,


E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.


Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.


Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.


Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,


O que fui de coração e parentesco,


O que fui de serões de meia-província,


O que fui de amarem-me e eu ser menino.


O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...


A que distância!...


(Nem o acho...)


O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!


O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,


Pondo grelado nas paredes...


O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),


O que eu sou hoje é terem vendido a casa.


É terem morrido todos,


É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...


Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!


Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,


Por uma viagem metafísica e carnal,


Com uma dualidade de eu para mim...


Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!


Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...


A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,


O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado —,


As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...


Pára, meu coração!


Não penses! Deixa o pensar na cabeça!


Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!


Hoje já não faço anos.


Duro.


Somam-se-me dias.


Serei velho quando o for.


Mais nada.


Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...


O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!..."

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