DiscoverCabo Verde 50 Anos de IndependênciaClandestinidade: a frente esquecida na luta de libertação de Cabo Verde?
Clandestinidade: a frente esquecida na luta de libertação de Cabo Verde?

Clandestinidade: a frente esquecida na luta de libertação de Cabo Verde?

Update: 2025-06-26
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Nos 50 anos da independência de Cabo Verde, a RFI publica e difunde várias reportagens sobre este tema. Neste quarto episódio, fomos à procura de pessoas que se dedicaram à luta na clandestinidade, algo que continua a ser uma das frentes menos visíveis na luta de libertação de Cabo Verde. Para conhecermos o trabalho feito nas ilhas, mas também na diáspora, as técnicas para ludibriar a polícia política, assim como as experiências daqueles que a PIDE prendeu nos "cárceres do Império", conversámos com Óscar Duarte, Gil Querido Varela, António Pedro da Rosa, Marline Barbosa Almeida, Adão Rocha e Manuel Faustino.

Foi no ano 2000, na cidade da Praia, que os Tubarões Azuis conquistaram a X Edição da Taça Amílcar Cabral, talvez a mais importante vitória da selecção de Cabo Verde. A prova, com o nome do líder da luta pela independência, foi conquistada quando os jogadores eram treinados por Óscar Duarte, um nome que ficou conhecido no futebol português nos finais da década de 70: foi campeão pelo FC Porto em 1979 e chegou a vestir a camisola das Quinas no Parque dos Príncipes, em Paris, em 1978. Antes disso, Óscar Duarte tinha travado uma outra luta, a da libertação de Cabo Verde, o que o levou a estar preso quase dois anos no campo de São Nicolau em Angola, depois de ter passado pelo Tarrafal, da ilha de Santiago, e por Caxias, em Portugal.

Era das piores prisões que havia na era colonial. Quando a pessoa - para eles - cometesse qualquer erro, surravam nas pessoas. A mim também me bateram. Eu sou técnico agrícola e ao trabalhar na agricultura, se tirasse qualquer produto da agricultura batiam-me. Utilizavam esses dois utensílios: palmatória e chicote. Sabe o que é uma pessoa levar às vezes 200 palmatoadas na mão? Quando a mão incha, as veias ficam ensanguentadas. E batiam no rabo com a palmatória. Portanto, houve muita gente que morreu assim. Eu, durante o tempo que lá estive, uma vez houve um problema qualquer e - como era uma prisão natural, não havia prisão lá dentro - eu estive quase três meses numa cela com cinco palmos de comprido, três de largo. Eu sentava-me, esticava a perna e ocupava aquilo tudo. Era sempre escuro, onde fazia as minhas necessidades é que tinha de abrir a torneira também para beber e havia uma refeição por dia”, conta. Essa cela era a “frigideira durante o verão” e “frigorífico na época de cacimbo que é o frio”.

“Durante esse tempo que estive na frigideira ou no frigorífico, era uma refeição por dia. Era só o pequeno almoço, fuba, um bocadinho de amendoim e uma chávena de café preto. Depois a pessoa ia perdendo peso. Houve muita gente que foi à loucura. Eu aguentei, mas houve muita gente que morreu por lá. E depois havia uma outra agravante, que era que quando iam buscar uma pessoa à noite, dificilmente apareciam. Matavam-nas”, recorda Óscar Duarte.

Era preciso resistir para sobreviver. Resistir à "frigideira" ou "frigorífico", aos espancamentos, à fome, aos trabalhos forçados, à loucura. Óscar Duarte viu muita gente morrer. Um dia, um prisioneiro que tinha tentado fugir foi crucificado para todos verem. Mas Óscar Duarte resistiu. A dada altura, foi transferido do Campo de São Nicolau para o Campo da Foz do Cunene e também aí continuou a resistir e até a jogar à bola, entre lacraus, cobras e jacarés.

“Tínhamos de trabalhar todos os dias, era deserto e tal, a temperatura era quase de 50 graus. Hoje, abríamos vala, amanhã tapávamos. Cortávamos pedra, depois arrumávamos. Só para ocupar tempo. Era um castigo. E depois tínhamos muito receio porque não tínhamos sequer uma aspirina, um vidro de álcool. Nada disso. E havia lá muito lacrau, se o lacrau picar uma pessoa é terrível porque tem veneno. Havia lacrau, havia cobras, havia tudo isso. Havia lá um rio e nós fizemos lá alguma agricultura com o limo do rio, misturámos com a terra e tirávamos sempre qualquer coisa. Às vezes íamos para o rio jogar a nossa bola e  jacarés com quatro metros e tal! Uma pessoa se se distrai, até podia ser apanhado pelo jacaré!”, lembra.

Criado em 1962, o Campo de Recuperação de São Nicolau situava-se num território desértico no litoral angolano, a norte da então Moçâmedes (Namibe). Para lá eram enviados guerrilheiros suspeitos de actividades subversivas, por vezes acompanhados da família. Em 1964, estavam lá presas 651 pessoas. Em 1972, eram 1.123 prisioneiros. Óscar Duarte foi desterrado para lá por fazer parte da rede clandestina de militantes do PAIGC em Cabo Verde.

“Eu fui para São Nicolau porque tínhamos um núcleo e trabalhávamos na clandestinidade. Na altura, a PIDE tinha a coisa muito bem controlada e por cada informação que a pessoa desse, eles pagavam 500 escudos. E nessa altura já era algum dinheiro. Deitámos uns panfletos em São Vicente e houve um indivíduo que pertencia ao nosso núcleo, que foi deitar panfletos no cinema, foi apanhado e depois torturaram-no. Inclusive ele falou-nos de um alicate nos testículos. Portanto, ele teve que 'cantar', teve que dizer tudo”, acrescenta. Óscar foi preso na cidade da Praia e submetido a tortura nos interrogatórios: uma semana virado para uma parede sem dormir e a ter alucinações da mãe a chorar.

No Tarrafal da ilha de Santiago, em Cabo Verde, também era preciso resistir. Numa primeira fase, entre 1936 e 1956, ali estiveram presos portugueses que contestavam o regime fascista e o local ficou conhecido como “Campo da Morte Lenta”. Em 1962, passou a chamar-se “Campo de Trabalho de Chão Bom” e foi então que se tornou na cadeia de militantes nacionalistas de Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde.

Em Cabo Verde, a luta na clandestinidade começou a ser forjada, em 1959, por nomes como Abílio Duarte, do PAIGC, e José Leitão da Graça, ligado ao partido UPICV, que são obrigados a deixar o país devido à polícia política. Depois, vários militantes do PAIGC fizeram trabalho político para mobilizar a população em torno da causa independentista e para criar um ambiente favorável ao desembarque no arquipélago de guerrilheiros armados. Isso acabaria por não acontecer, mas foi minuciosamente preparado. A polícia política portuguesa também não permitiu o desenvolvimento da rede clandestina porque foi prendendo, ao longo do tempo, vários dos responsáveis nas ilhas. Foi o caso de Carlos Lineu Miranda, Fernando dos Reis Tavares, Jaime Schofield, Luís Fonseca e vários outros.

Gil Querido Varela foi preso em 1968, interrogado e torturado pela polícia no Plateau, transferido para a Cadeia Civil da Praia e entra no Tarrafal em Abril de 1970. Sai em Janeiro de 71. Era suspeito de prática de “crime contra a segurança interior e exterior do Estado”. Gil Querido Varela era militante do PAIGC e fazia a luta política na clandestinidade.

“Nós trabalhávamos, visitávamos amigos. Eu, por exemplo, ia à Ribeira da Barca, aproveitava no momento em que estava trabalhando no campo e lá ia fazer o trabalho político, [dizer] que devíamos entrar no PAIGC para libertar a terra. Quem já tinha visto a fome de 1947 - que eu vi uma parte - não ficava sem fazer nada. Vi crianças morrerem de fome, com o corpo inflamado de fome. Mães com crianças mortas nas costas que não tiravam para poderem achar esmola. Os colonialistas troçando da fome do povo. Eu já estava farto deles e entrei rápido no PAIGC. Quem viu aquela fome era impossível não lutar. Só quem não tem sentimento”, afirma Gil Querido Varela, aos 90 anos, enquanto nos mostra o Tarrafal ao lado do camarada António Pedro da Rosa, de 76 anos.

O amigo, António Pedro da Rosa, também lutava na clandestinidade e foi detido em Agosto de 1970, interrogado e torturado, transferido para a Cadeia Civil da Praia e enviado para o Tarrafal em Fevereiro de 1971, de onde saiu a 1 de Maio de 1974.

“A luta na clandestinidade nós fazíamos da seguinte forma: Eu tinha um colega, Ivo Pereira, que trazia sempre jornais, panfletos e líamos para os rapazes colegas. E tínhamos um livro também que era “Luta Armada”, líamos e explicávamos a alguns rapazes sobre esta situação. Por isso é que fazíamos este trabalho na clandestinidade, através de panfletos e livros que íamos estudar com os rapazes colegas. Íamos sentar aqui num sítio qualquer porque também já sabíamos que havia alguns rapazes que eram informantes da PIDE, porque cada informação que eles levavam para a PIDE eram 500 escudos e 500 escudos na altura era muito dinheiro. Por isso fizemos todo esse trabalho, mas com muito cuidado”, recorda António Pedro da Rosa, na biblioteca do campo de concentração do Tarrafal que vai ser candidato a Património Mundial da UNESCO.

Voltaremos ao Tarrafal guiados por Gil Querido Varela e António Pedro da Rosa no oitavo episódio desta série, mas concentremo-nos, por agora, na luta clandestina que se fazia em Cabo Verde. Havia quem fingisse ser namorada de um dos presos do Tarrafal para levar mensagens do exterior. Foi o que fez Marline Barbosa Almeida que trabalhava na célula clandestina do PAIGC na Praia, criada em 1968, sob direcção de Jorge Querido, o coordenador das actividades clandestinas do PAIGC em Cabo Verde, entre 1968 e 1974. Foi assim que ela conseguiu levar para a prisão informação e mensagens, incluindo dentro de tubos de pasta dos dentes.

“Nós tínhamos alguns guardas, conseguíamos conversar, então mandávamos bilhetes através de pastas de dentes que nós abríamos com aquela dobrinha. Então nós tirávamos a maioria da pasta, metíamos as informações num plástico, tornávamos a meter lá e mandávamos. Depois, o director da cadeia era cunhado da minha irmã e sabia no que é que eu andava. Mas como ele era católico, presumidamente democrata, eu arranjei “namoro” com um dos presos. E ia lá e nós éramos obrigados a ir com ele assistir

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