As Festas dos Loucos, dos Inocentes e do Burro
Description
</figure>Ontem, conversei até à meia noite, durante mais de duas horas, sobre o carnaval. Comentei e ilustrei, com música e imagens, algumas das figuras mais caraterísticas do imaginário carnavalesco.
Imagem: Raoul Le Petit. L’Histoire de Fauvain, 1326. Bibliothèque nationale de France
Na Idade Média, sucediam-se, no final de fevereiro, três festas: dos Loucos, dos Inocentes e do Burro. Perduraram até ao século XVIII. Seguem:
- Três cânticos da Missa do Burro;
- Um testemunho de 1741 sobre as festas do Loucos e dos Inocentes;
- Um programa da rádio Europe 1 dedicado a estas três festas.
Na festa do Burro, o “arcebispo” eleito, entrava na igreja montado num burro às avessas. Seguia-se uma paródia de missa e procissão, ambas acompanhadas a preceito com cânticos (a)berrantes, de preferência zurrados.
<figure class="wp-block-audio"><figcaption class="wp-element-caption">Clemencic Consort – Kyrie Asin- Litaniei. La Fête De L’Âne, 1980</figcaption></figure>
<figure class="wp-block-audio"><figcaption class="wp-element-caption">Clemencic Consort – Novus annus – Hunc diem – Ite missa est – Orientis partibus II. La Fête De L’Âne, 1980</figcaption></figure>
<figure class="wp-block-audio"><figcaption class="wp-element-caption">Clemencic Consort – Procession: Cavalcade. La Fête De L’Âne, 1980</figcaption></figure>
Nas suas Mémoires pour servir à l’histoire de la fête des fous, publicadas em 1741, Mr. Du Tilliot descreve os desmandos das festas dos Loucos e dos Inocentes:
Elegia-se nas Igrejas Catedrais um Bispo ou um Arcebispo dos Loucos, e a sua eleição era confirmada por muitas bobices ridículas que serviam de consagração, em seguida promoviam-no a oficial pontífice, para dar a bênção pública loucamente ao povo, transportando a Mitra, a Cruz e, mesmo, a cruz arquiepiscopal. Mas as Igrejas Isentas, ou que recebem imediatamente da Santa Sede, elegiam um Papa dos Loucos (unum Papam fetuorum) a quem também se dava, com grande derisão, os ornamentos do papado, de modo a que pudesse agir e oficiar solenemente como o Santo Padre.
Os Pontífices e as Dignidades desta espécie eram assistidos por um clero também licencioso. Viam-se os Clérigos e os Padres fazer na Festa uma mistura horrorosa de loucuras e impiedades durante o serviço Divino ao qual só assistiam, nesse dia, com roupas de Mascarada e Comédia. Uns estavam mascarados, ou com as caras manchadas, que metiam medo ou que faziam rir, outros com roupas de mulheres ou de pantomimos, como os atores de Teatro. Dançavam no coro e cantavam canções obscenas. Os diáconos e os subdiáconos entregavam-se ao prazer de comer chouriços e salsichas no Altar, debaixo do nariz do padre oficiante: jogavam às cartas e aos dados: colocavam no Incensário pedaços de calçado velho para dar a respirar um mau odor. Após a missa, cada um corria, saltava e dançava pela igreja com tanta impudência que alguns não tinham vergonha de se entregar a extremas indecências, e de se despojar completamente: em seguida faziam-se conduzir pelas ruas em tonéis cheios de imundícies, tomando prazer em arremessá-las à populaça que acudia à sua volta. Paravam e faziam com os seus corpos movimentos e posturas lascivas, que acompanhavam com palavras impúdicas. Os mais libertinos dentre os Seculares misturavam-se no meio do clero, para assumir também algumas personagens de loucos em trajes eclesiásticos, de Monges e Religiosas (…)
Em determinados Mosteiros de Provence se celebra a festa dos Inocentes com Cerimónias tão impertinentes e tão loucas, como se faziam outrora as solenidades aos falsos Deuses. Nunca (…) os Pagãos solenizaram com tanta extravagância as suas festas cheias de superstições e de erros como se soleniza a festa dos Inocentes em Antibes entre os Cordeliers. Nem os Religiosos Padres, nem os Guardas vão ao Coro nesse dia. Os irmãos Laicos, os Irmãos-Corta-Couve, que fazem o peditório, aqueles que trabalham na cozinha, os ajudantes de cozinha, os que tratam dos jardins, tomam o seu lugar na Igreja e dizem que vão produzir um ofício conveniente a tal festa, uma vez que são os loucos e os furiosos, e dizendo-o assim o fazem. Vestem ornamentos sacerdotais, todos despedaçados, e virados do avesso. Seguram nas suas mãos livros virados ao contrário, lidos de frente para trás, fazendo de conta que os leem com óculos a que retiraram os vidros, e aos quais adaptaram cascas de laranja, o que os torna disformes, e tão horríveis, que é preciso ver para crer, sobretudo que, após terem soprado nos incensários que abanam nas mãos por derisão, a cinza cobre a cabeça de uns e outros. Nestes atavios não cantam nem Hinos, nem Salmos, nem Missas correntes; mas resmungam determinadas palavras confusas, e dão gritos tão loucos, tão desagradáveis e tão discordantes, como uma vara de porcos a grunhir: de tal modo que as bestas brutas não celebrariam pior o ofício do dia. Porque mais valeria, efetivamente, trazer as bestas brutas para a Igreja, para louvar o Criador ao seu jeito, e seria, certamente, uma santa prática a seguir, do que aguentar estas pessoas que gozando Deus, com semelhantes louvores, são mais loucos e mais insensatos do que os animais mais insensatos e mais loucos” (Mr. Du Tilliot, Mémoires pour servir à l’histoire de la fête des fous, 1741, pp. 5-6 e 19-20).
No podcast Au Coeur de l’Histoire, da Europe 1, no episódio “La fête des Fous, le Carnaval médiéval de la débauche”, Clémentine Portier-Kaltenbach aborda as festas dos Loucos, dos Inocentes e do Burro.
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