Em turnê europeia, Ney Matogrosso revisita cinco décadas de palco e anuncia disco com músicas de Angela Ro Ro
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Em entrevista exclusiva à RFI, Ney Matogrosso comenta a recepção calorosa da turnê europeia e o crescimento de um público jovem e diverso em seus shows. Ele fala sobre a longevidade artística, a relação com a plateia e revela seu próximo projeto: um disco dedicado a Angela Ro Ro (1949-2025), idealizado ainda antes da morte da cantora. Um encontro entre gerações, afetos e reinvenção contínua do eterno "Pavão Misterioso".
Márcia Bechara, da RFI em Paris
A entrevista com Ney Matogrosso, 84 anos, foi realizada após sua apresentação do show Bloco na Rua na casa de espetáculos Les Pyramides, na região parisiense, no domingo (12). O encontro marcou o retorno do artista à capital francesa, após passagens por Portugal e Suíça. Em conversa com a RFI, ele revisitou sua trajetória e revelou novos projetos.
RFI: Após o show, no final do bis, já encerrando o espetáculo, você disse:"Olha, eu não esperava isso aqui hoje." Eu gostaria que você comentasse essa sensação depois do show em Paris.
Ney Matogrosso: Eu não esperava porque achei o público anterior, lá em Zurique, um pouco mais reservado — embora eles não tenham sido reservados comigo, não. Mas não era o tipo de reação que eu conheço. De repente, em Paris, eu vi uma coisa que conheço muito bem. Teve manifestações que eu não estava esperando que acontecessem ali.
RFI: Você demorou para voltar a Paris. Esse retorno tem a ver com o lançamento mundial da sua cinebiografia aqui na capital francesa, em maio?
Ney Matogrosso: Não tem um motivo específico. É preciso que haja pessoas interessadas aqui para me trazer, não é? Eu não acho que o show em si esteja ligado ao evento [lançamento do filme]. Mas estou observando o crescimento de uma plateia muito jovem — adolescentes e até crianças [depois da cinebiografia "Homem com H", dirigida por Esmir Filho]. E está acontecendo uma outra coisa também: em vários lugares onde fizemos o show aqui na Europa, vi pessoas pintadas, como eu me pintava nos tempos dos Secos & Molhados.
RFI: A Josephine Baker cantava: "J’ai deux amours, mon pays et Paris", "Eu tenho dois amores, meu país e Paris". Você tem uma história de amor com esta cidade?
Ney Matogrosso: Não, nada especialmente. Já vim muitas vezes. Fui muitas vezes ao festival de Montreux, que era na Suíça. Nessas vezes que vim a Montreux, também dava muitas entrevistas para pessoas da França. Fui a rádios francesas e tudo mais. Então, era assim: eu estava por aqui, aproveitava e fazia tudo que me solicitavam.
RFI: Você se apresentou na terra da "chanson française", de Juliette Gréco, Françoise Hardy, Georges Brassens, Édith Piaf e tantos outros. Algum desses cantores, desse universo francês, já te inspirou?
Ney Matogrosso: Não sei te responder isso. Mas voltando à Josephine Baker: você sabe que, na primeira vez que fui a Montreux, me compararam a ela? Porque eu ficava quase pelado em cena, eu era um índio. Eles falavam que eu me parecia com a Josephine Baker, com a Carmen Miranda. E eu dizia: "Gente, eu não tenho nada a ver com isso. Estou em outra história" [risos]. Mas eu entendia: para me compreender, eles tinham que me comparar com essas pessoas. Era o máximo que podiam informar a meu respeito. Eles precisavam etiquetar e catalogar em alguma referência.
RFI: São mais de cinco décadas de carreira, contando os tempos dos Secos & Molhados. Há uma evolução técnica, especialmente na questão da voz, que é impressionante em cena. Existe um trabalho por trás disso?
Ney Matogrosso: Para a voz, não. É ela que ainda está segurando o tranco. Agora, para o corpo, eu faço ginástica diariamente quando estou em casa. Eu tenho 84 anos, mas continuo dançando igual [risos].
RFI: E se transfigurando, atravessando gerações. Se você pensar bem, as pessoas que estavam nascendo quando você começou sua carreira hoje são pais e avós. Como você vê isso? Vi pessoas emocionadíssimas cantando músicas antigas e muitos jovens no show.
Ney Matogrosso: Sim, eles adoram. A "Balada do Louco", por exemplo, eu cantei em 1983. Mas é uma música muito emblemática no Brasil. A letra é dos Mutantes, da Rita [Lee]. Então, fico muito feliz de estar cantando "Balada do Louco" e ver as pessoas reagindo dessa maneira.
RFI: O show "Bloco na Rua" continua a rodar na Europa?
Ney Matogrosso: Sim, continua. Agora estou no Porto, em Portugal. Faço show aqui e depois volto para casa. Mas tenho esse show marcado até maio do ano que vem.
RFI: Há coisas paralelas interessantes acontecendo. Em 2026 está prevista a reedição cinquentenária de um dos seus álbuns mais emblemáticos, o "Bandido", de 1976.
Ney Matogrosso: Três discos, na verdade. Parece que vão relançar o disco com Pedro Luís [do grupo Pedro Luís & a Parede], o "Vagabundo". Já foi relançado meu primeiro disco, "Água do Céu-Pássaro", que nunca mais tinha sido relançado – e foi em LP mesmo.
RFI: E tem algo novo vindo por aí nessa volta ao Brasil?
Ney Matogrosso: Estou querendo cantar um disco só com músicas da [Angela] Ro Ro. E isso já era uma ideia minha antes dela morrer, tá? Estou pretendendo fazer um disco. Hoje em dia não existe mais essa história de lançar um álbum e fazer um show. Isso não existe mais. mas ainda estou mudando o show [Bloco na Rua], acrescentando músicas para ele não ficar chato para mim, porque estou com ele desde 2019. Claro que [com a pandemia] em 2020 e 2021 ficamos todos proibidos de existir. Desde então, viajo com esse show. Então estou acrescentando músicas, algumas que já cantei, para mudar um pouco o repertório. Não quero que fique igual durante dez anos.
RFI: Qual é o seu critério para escolher o repertório?
Ney Matogrosso: Eu gostar. Se eu gosto, talvez eu possa fazer bem.
RFI: E esse gostar pode ter a ver com memória afetiva?
Ney Matogrosso: Também. Mas não só isso.
RFI: Dessas novas vozes da música popular brasileira que surgem, tem alguma que te chama atenção? Algum artista com quem você já tenha dialogado?
Ney Matogrosso: Uma pessoa que eu conheci e que convidei para fazer uma participação num trabalho que eu fiz foi a Liniker. Eu gosto muito dela. Acho interessante. Pedi para ela fazer uma música para mim e ela perguntou: “Romântica? Porque eu só sei fazer música romântica.” Eu disse: “Pode ser, né?” É assim.
RFI: Para terminar: é difícil envelhecer?
Ney Matogrosso: Não. Não dói [risos].
RFI: Pelo contrário, está tudo mais colorido?
Ney Matogrosso: É, para mim está. Porque eu acho que, na verdade, a base do meu sustento emocional é meu trabalho. Se com o trabalho está tudo certo, então comigo está tudo certo. Fisicamente eu ainda estou capaz, então está tudo certo.