Um neo-bolchevique na praia lusitana. Conversa com Arturo Zoffman
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Vamos falando como alguém a quem os dentes foram arrancados das gengivas, mas que, em vez de os cuspir, se dá a um trabalho desgraçado para que não lhe escapem da boca, para não os engolir, esperando a oportunidade de que lhe seja restituído aquele sorriso de antes. Mas quando ao certo? Apesar da insubordinação dos factos materiais contra a ordem fixa das coisas, que há muito estão reduzidas ao seu mero valor de troca, as palavras exprimem uma realidade que já não deveria precisar de ser explicada. Não fosse para interromper o modo estuporado de uma cultura que distorceu inteiramente a relação entre a vida e o pensamento. Todas as evidências parecem inúteis, pois buscamos nos outros uma audácia que nos falta a nós mesmos. Não deveria ser preciso, hoje, repetir o repto feito por Bataille na revista Contre-attaque, nos anos 1930, apelando a “violentos sobressaltos de potência” nascidos nas ruas contra a “impotência” das hesitações politiqueiras perante os movimentos fascistas. A verdade é que nos cansamos da nossa própria farsa indigesta, pois tanta exasperação em tentar instigar os outros revela, na verdade, como não estamos a conseguir convencermo-nos nem a nós mesmos. O próprio activismo não é, como já sabemos, mais do que uma renitência em graduarmo-nos através do nosso desespero, preferindo experimentar uma e outra vez a nossa impotência, aguardando que a catástrofe venha enfim tornar irrecusável tudo aquilo que fomos dizendo. “O activista mobiliza-se contra a catástrofe. Não faz mais do que prolongá-la. A sua precipitação consome o pouco de mundo que ainda existe. A resposta activista à urgência permanece ela própria no interior do regime de urgência, sem esperanças de o abandonar ou interromper”, lê-se em “Convocação”, um texto sem assinatura, na linha daquilo a que nos foram habituando os membros do Comité Invisível. Enquanto isso, se “as leis, códigos e decisões de jurisprudência existentes são suficientes para tornar punível qualquer existência, bastando para tal que sejam aplicados à letra”, é evidente que não queremos deixar de estar sob tutela, como se o sentido mais profundo que nos inquieta fosse apenas uma incerteza em relação ao plano, como se não conseguíssemos deixar de fazer as nossas birras de fedelhos, mas sem levar as coisas ao ponto de assumir a tarefa de nos governarmos a nós próprios. Habituámo-nos à previsibilidade da história, e aquilo que receamos acima de tudo é que se acabem os castigos. Custa-nos romper, assumir uma força de abjecção diabólica, deixar que a vaga dos sonhos que poderia arrastar-nos com ela nos leve a assumir algum acto irreversível. Por isso apenas flertamos com as influências ou ideias transgressoras. Já sabemos demasiado para o nosso bem. Sabemos como faltou sempre por aqui um conceito radical de liberdade, e que o liberalismo não passa de um regime anquilosado que, com a sua moral humanista, funciona como um perfeito álibi para continuarmos entretidos com as nossas denúncias, as nossas manifestações inofensivas, enquanto toda a comunidade é arruinada, e os grupos se vêem separados dos meios de existência e dos saberes que poderiam dar-lhes as condições de se emanciparem, desertando de vez. Enquanto isso prossegue “a devastação metódica de tudo aquilo que permanecia vivo na relação dos humanos entre si e com os seus mundos” (“Convocação”). Boa parte dos protagonistas envolvidos nas operações de mobilização já não iriam ser capazes de fazer mais nada se, por um milagre, se operasse a transformação que tanto dizem buscar. Quanto ao liberalismo, ganhou uma evidência pornográfica como o seu princípio axial é a ideia de que tudo deverá ser tolerado, tudo pode ser pensado e manifestado, desde que não afecte a estrutura da sociedade, nem ponha em causa as suas instituições ou o poder do Estado, o qual serve acima de tudo para sustentar a ficção policial em torno das formas de propriedade e da obscena acumulação de capitais nas mãos de muito poucos. “Por outras palavras, a liberdade de pensamento do indivíduo deve ser total, a sua liberdade de expressão também, mas não poderá esperar a concretização das consequências do seu pensamento no que respeita à vida colectiva”, lê-se nas páginas do opúsculo já referido. Parece-nos que 2025 é uma data que deveria estar situada no futuro, mas despertamos a cada dia forçados a reconhecer que estamos condenados a andar às arrecuas, sobretudo se tivermos em conta aquele ideal de liberdade que, segundo Breton, neste mundo, só à custa de milhares de duros sacrifícios poderia ser alcançada, sendo vivida então sem limitações, sem qualquer calculismo pragmático. No fundo, este ideal torna-se ameaçador não apenas para o sistema, mas para o carácter da maioria de nós. O maior triunfo do capitalismo foi ter sido capaz de reproduzir o homem como um ser à sua imagem, um ser que se identifica e reflecte todas as suas aspirações vazias, degradantes, um ser incapaz de beneficiar da partilha, desde logo a partilha das nossas necessidades, desde as mais básicas aos anseios que nos fazem voltarmo-nos para fora, sentirmos fome de mundo, de algo que não se confunda com as distrações e divertimentos ao nosso dispor neste cemitério imenso. A verdade é que as necessidades foram substituídas por compulsões, os desejos foram degradados até darem lugar a meros caprichos, às intrigas e obsessões de subjectividades amesquinhantes, que retiram o seu gozo das inúmeras formas de predação, de uma sobrevivência que depende da escravização do outro. As nossas metrópoles não são mais do que a planificação desse truculento universo infinitamente dobrado sobre si mesmo, um meio onde cada interacção faz evoluir o conteúdo de agressividade, em que cada uma das outras formas de existência constitui para nós um obstáculo, um empecilho, o que nos programa de forma a não perdermos muito tempo a imaginar o efeito que as nossas acções possam ter na vida ou na intimidade do outro, e daí até ao seu massacre impõe-se apenas a possibilidade de forjar um argumento exculpatório. Neste episódio, tivemos de ir ao passado buscar um desses moldes quebrados, fomos às forjas de onde saíam aqueles rapazes dados a uma militância anterior a todo este efeito de separação, a todos estes contextos sociais em que se toma como criminosa a mais pequena tentativa de passar por cima da mediação do mercado. Arturo Zoffman consegue essa proeza de ser jovem mas antigo, é espanhol mas alguém lhe deve ter cuspido um bom pedaço de sangue russo nas veias. Mas pode ser que isto seja um efeito dos seus interesses e do seu campo de estudo. Muito ligado às revoluções do início do século passado,é membro do colectivo de comunistas revolucionários e dirige um projecto na FCSH que procura analisar a forma como a emergência dos fascismos na Europa teve como resposta um endurecimento dos regimes democráticos, com mudanças constitucionais, estados de excepção, etc. É um homem-relíquia, tanto pode estar atrasado um século em relação à sua época como pode ser já um dos primeiros elementos de uma espécie vindoura.