DiscoverOxigênio Podcast#173 – Série Cidade de Ferro – ep. 2: O maior buraco do mundo
#173 – Série Cidade de Ferro – ep. 2: O maior buraco do mundo

#173 – Série Cidade de Ferro – ep. 2: O maior buraco do mundo

Update: 2023-11-09
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FERNANDA:


ITABIRA


Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê.


Na cidade toda de ferro


as ferraduras batem como sinos.


Os meninos seguem para a escola.


Os homens olham para o chão.


Os ingleses compram a mina.


Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma na derrota incomparável.


YAMA: Introdução  – Em busca do Cauê


YAMA: É difícil encontrar o pico do cauê. Não a montanha, que sabemos, não existe mais. É que o local onde um dia houve um pico é difícil de encontrar. Subimos mirantes para ver se, do alto, dava pra ver o buraco. Sem sucesso, eu e Lucas rodamos de carro por um tempo considerável em companhia do google maps e de dois pares de olhos atentos. Subindo uma estrada estreita de duas pistas há vários sinais de que estamos dentro da Vale, mas nada de Cauê. Vejo os barrancos ferrosos se misturarem aos eucaliptos tão mais frequentes quanto mais alto subimos. Caminhões e máquinas pesadas. Lama, muita lama. Placas de segurança e placas urbanas. As placas colocadas pela Vale se abundam. A mais repetida não deixa dúvidas: propriedade privada da VALE SA, não ultrapassar. Invasão é crime! Outras, beiram ao cinismo, como a que vimos num pequeno morro com cinzas de queimadas: evite queimadas, preserve a natureza, sugere a placa da Vale. 


Não muito distante dali o GPS informa: você chegou ao seu destino. Mas onde chegamos exatamente? À direita do carro, vejo lama, vejo florestas falsas e tristes. Trabalhadores da Vale, ou melhor, de suas terceirizadas, curiosos com a nossa presença. Estamos na cidade, em rua pública, mas a sensação é de que invadimos a mina. Distraído com tanta informação à direita, Lucas me chama a atenção. À nossa esquerda, ali está, milimetricamente escondido entre morros sobreviventes. A paisagem que dá nome ao lugar. O maior buraco do mundo. 


As palavras se perdem. Já sabemos do que se trata, mas o queixo cai mesmo assim. É como visitar a lápide do pico, mas com o sentimento contraditório e incômodo de que é a nossa própria lápide também. Senti como nunca antes o significado de que cada de um nós tem seu pedaço no pico do cauê. Se as barragens chocam pela presença interminável da lama, o maior buraco do mundo dilacera por uma ausência incalculável. Um buraco aberto que exibe as entranhas da terra e nos mostra a grandiosidade de quase 100 anos de extrativismo desavergonhado. 


Eu sou Yama Chiodi, jornalista do GEICT e esse é o segundo episódio da série Cidade de Ferro. Nesse episódio, tento recuperar de modo muito breve como as histórias de Itabira e da mineração de minério de ferro se entrelaçaram. E como seu cidadão mais ilustre, Carlos Drummond de Andrade, se tornou persona non grata por ser ferrenho crítico do que a mineração fez com sua cidade natal. Sigo esse episódio com Lucas Nasser, pesquisador e advogado itabirano, autor do livro “Entre a Mina e a Vila: violações de direitos em Itabira”. 


YAMA: Na obra de Drummond há duas Itabiras… ou a transformação de uma Itabira em outra. E o pico do cauê é a alegoria perfeita para essa transformação. Não por acaso, o poeta o classifica como “Nossa primeira visão do mundo” na crônica Vila da Utopia – a mesma que nos dá a expressão “destino mineral”. Se a montanha era o mundo, sua pulverização catapulta a história poética da cidade a uma história de fim de mundo. De montanha a buraco. E se a montanha muda, a cidade muda. Se a montanha muda, a poesia muda. 


Fica na memória uma cidadezinha pacata na qual se podia ver o Cauê imponente da janela de casa. E a memória se choca com a realidade. O século XX é para Itabira o momento histórico em que a cidade e a mineração se confundem, por força da violência e do extrativismo. Esse fenômeno foi aprofundado pela criação da Companhia Vale do Rio Doce. Depois de ser o centro minerário dos Aliados na segunda guerra mundial, Itabira se misturou cada vez mais a Vale. Quando chegou a privatização, não foi só a Vale que foi privatizada. A impressão que dá é que, sendo uma com a empresa, a cidade foi privatizada também. 


A seguir faço brevíssimo sobrevoo sobre a história do ferro em Itabira, que introduz como cidade foi tomada pela mineração. Se você quiser aprofundar um pouco mais na história e nas conexões da obra do Drummond com a mineração eu vou deixar mais uma recomendação, além do livro do nosso convidado Lucas Nasser. É o Maquinação do Mundo, do José Miguel Wisnik, publicado pela Companhia das Letras. Do meu ponto de vista é uma obra-prima e o livro definitivo sobre as conexões entre mineração e a obra poética de Carlos Drummond de Andrade. Mas, por ora, seguimos. 


YAMA: Primeira parte: Ferro à vista!


FERNANDA: 


Zico Tanajura está um pavão de orgulho


no dólmã de brim cáqui.


Vendeu sua terra sem plantação,


sem criação, aguada, benfeitoria,


terra só de ferro, aridez


que o verde não consola.


E não vendeu a qualquer um:


vendeu a Mr. Jones,


distinto representante de Mr. Hays Hammond,


embaixador de Tio Sam em Londres-belle-époque.


Zico Tanajura passou a manta em Suas Excelências.


De alegria,


vai até fazer a barba no domingo.


YAMA: O que levou os olhos grandes coloniais a Itabira a princípio não foi o ferro, mas o ouro. Quando as Minas Gerais demonstravam sinais inequívocos de cansaço na exploração aurífera, o viajante francês contratado pela coroa portuguesa, Auguste de Saint-Hilaire, visitou várias cidades do interior mineiro para tentar encontrar novos pontos de interesse para exploração de minério. Passou oito dias em Itabira, ainda no período pré-independência, no primeiro quarto do século XIX,  onde se assustou com o potencial de exploração minerária do local, que deu origem a sua famosa frase, abre aspas, “O ferro das montanhas de Minas Gerais pode de certo modo se considerar inesgotável”, fecha aspas. 


LUCAS: É, acho que foi internacionalizada, primeiro com o Saint-Hilaire, põe a boca no mundo, terra à vista né? Mandou lá a carta do Pero Vaz de Caminha. Mas Itabira já teve, um pouco antes, essa época do Saint Iller passou, já tinha uma fábrica de ferro, mas não no registro industrial, era de fazer ferramentas, de uso doméstico, né, digamos assim. 


YAMA: O ferro já estava ali, mas com outros propósitos, de escala muito menor. E, ainda assim, já atraía certo crescimento populacional. Mas é só na passagem do século XIX para o XX que a riqueza mineral itabirana coloca a cidade em risco. A ganância colonial que já fazia ameaças de tomar as montanhas nos tempos de Saint-Hilaire ganha outro formato, onde os ingleses radicados no Brasil trabalham lentamente por baixo dos panos. 


LUCAS: E aí teve um congresso em Estocolmo, que apontava esse potencial geológico em Itabira.


YAMA: É recorrente entre historiadores e pesquisadores que o grande marco histórico que inaugura essa nova fase do ferro em Itabira é o Congresso Internacional de Geologia, realizado em Estocolmo em 1910, ao qual o Lucas se referiu. O congresso foi realizado por grandes empresas siderúrgicas europeias e estadunidenses e tinha por objetivo principal fazer um detalhamento exaustivo das reservas de ferro existentes no mundo. 


José Miguel Wisnik diz que o diretor do Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil e um professor da Escola de Minas de Ouro Preto apresentaram no congresso um documento que mostrava de modo detalhado os lugares de Minas com maior potencial para exploração de ferro. Literalmente entregaram o mapa da mina do ferro brasileiro. 


LUCAS: Inclusive depois desse período, alguns ingleses que moravam no Brasil, engenheiros que foram contratados pra fazer, por exemplo, a ferrovia que liga Minas a Vitória, né, eles compraram uma porção de terra gigantesca. 


YAMA: A figura do inglês em Itabira é recorrente na poesia de Drummond. Não é por acaso que apenas um ano depois do congresso, a companhia inglesa Itabira Iron Ore Company recebeu autorização para funcionar no Brasil. O que se passou nos anos anteriores e nos anos subsequentes foi estarrecedor. Sabendo do verdadeiro valor das terras com seus morros e subsolos ferrosos, ingleses compraram quantidades gigantescas de terra no mato dentro a preço de banana. Os itabiranos vendiam sem saber o real valor de suas terras. 


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