Livralhada, alquimia, terror e verdade. Uma conversa com David Teles Pereira
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Desde a invenção de Gutenberg até ao actual quadro de proliferação absurda, dessa obesidade editorial que fez dos livros mais outra categoria entre os produtos de consumo, os séculos de lenta fermentação das linguagens e conceitos estão aí como destroços a flutuar à superfície de uma piscina, a saque para os fins de uma mitologia de bric-à-brac, tacanha, cavando uma fossa, um largo intervalo que poderia ligar um título de Dickens a outro de Balzac: Grandes Esperanças e As Ilusões Perdidas. Depois da engrenagem ter entrado em delírio com a ideia de progresso, sentimos que começa a esgotar-se até a promessa de sentido. O futuro viu-se absorvido pelo presente contínuo das infinitas mastigações distractivas, e tememos, com uma lucidez amarga, que o amanhã não seja senão uma versão ainda mais ignara disto mesmo. Abrir as redes sociais, acender um ecrã, deslizar o dedo por um fluxo interminável de imagens e frases truncadas produz hoje a sensação de que em toda a parte se rompeu o pacto social: regressámos ao estado de natureza, recaímos na barbárie luminosa do comentário instantâneo. A cada notificação, uma crispação; a cada opinião, uma faúlha de ódio. Alguns, como outrora advertira Sciascia, veriam nisto a erosão última da palavra escrita — o seu desgaste até à transparência, até que já nada nela resiste ao ruído e à velocidade. Existíamos — lêssemos ou não — dentro de uma sociedade literária, onde os argumentos, as formas de arquivo, as listas e até os modos de enunciação provinham do enredo dos textos, da composição e ordem que se alargava a partir das bibliotecas, como se ali estivesse o núcleo de uma trama com possibilidades de expansão até ao infinito. Mas as imagens… essas formas que serviam de ilustração, um esboço para catapultar o impulso ou um eco, começaram a reproduzir-se como uma praga, a invadir o centro, a degradar o eixo do imaginário, o seu movimento de rotação e translação, que acabou por se fixar, a realidade encadeada pelo seu substituto. Saturado, o olhar já não mergulha no interior em busca de uma alucinação estupenda, mas fica agarrado ao estímulo; já não lê, absorve-se. A narrativa dissolve-se em fragmentos visuais, o tempo perde espessura, e o mundo, reduzido a ecrã, já não se conta: actualiza-se. Como escreve José Emilio Pacheco no ensaio do qual partimos para esta reflexão, “um mundo sem leitura é um orbe em que o outro só pode surgir como inimigo”. “Não sei quem é, o que pensa, quais são as suas razões. E, sobretudo, não possuo palavras para dialogar com ele. Por isso, só me é possível percebê-lo como ameaça.” Hoje tudo reemerge com o brilho artificial de outra Disneylândia, como nostalgia daquilo que não vivemos e nunca foi nosso. Mas é pior do que isso: a nostalgia tornou-se uma função sistémica, uma engrenagem exasperada que anula o próprio passado, convertendo-o em matéria-prima para as retrotopias do presente. O que antes era memória transforma-se em decoração, em cenário temático de um mundo sem recordação. Não espantará, pois, que dentro de alguns anos surja um parque temático consagrado aos livros — simulacro final de uma experiência extinta. Entre nós, já se ensaiou essa utopia domesticada na aldeia literária de José Pinho, em Óbidos: gesto audacioso e melancólico, como quem ergue uma biblioteca dentro de um aquário. Não é possível falar destes assuntos sem enfrentar a dúvida sinistra: defender hoje o livro e a leitura não equivalerá, afinal, a reforçar a charanga, o enredo trapaceiro de uns e umas sempre à cata das verbas, dos fundos de desenvolvimento, ávidos por os converter em festivais de miragens concentradas, todos estes certames onde o culto do autor, exibindo-se como produto, obsta a que se leiam e discutam os textos? “Quando comecei a escrever, ensinaram-me que o eu era odioso; o elegante e o edificante consistia em empregar sempre o nós. No fundo dessa regra de boa conduta literária residia a ilusão de que existia uma comunidade de pessoas ilustradas ou que aspiravam a sê-lo”, adianta Pacheco. “Partilhavam um vocabulário, um código e algumas ideias gerais acerca daquilo que, neste domínio, constituía o bem comum.” Agora, o intolerável — e por vezes grotesco — é falar na primeira pessoa do singular, submergir nesse regime autobiográfico que fez da autoficção um modelo universal de salvação e comércio. Cada fragmento de vida converte-se em dogma, cada emoção em mercadoria moral, cada exposição em gesto de legitimação. O mundo exterior, os tantos que se sentem parte de uma comunidade privilegiada por aderirem a este regime mimético, participam do mesmo culto narcísico: repetem-se, confirmam-se, citam-se mutuamente como se a autenticidade fosse uma forma de poder. Assim, o “eu” transforma-se em tirania discreta — um império de pequenos despotismos sentimentais, onde cada confissão exige aplauso e cada dor privada reclama estatuto de verdade absoluta. Neste episódio, tivemos connosco o David Teles Pereira, elemento da formação original dessa banda sertaneja chamada Língua Morta, em que chegou a lançar alguns êxitos supreendentes como Coração Anacoluto, Beijo Heteronímico, Livro do Desassossego com Forró, O Guardador de Galinhas Selvagens, Balada do Espantalho Sonâmbulo, Sinais de Fogo no Pijama do Lobo. Veio falar-nos de políticas públicas para o sector do livro, e ainda de Lovecraft, Carl Schmitt e outras profanidades que não conseguimos transcrever nem arrumar neste tipo de categorias.