O GESTO CONTA? SOFIA FERNANDES
Description
O gesto é tudo. Ou quase tudo.
No mundo onde o silêncio quase absoluto reina é o gesto que nos liga.
Nesta edição falamos, ouvimos e gesticulamos.
Um mergulho no mundo na língua que as pessoas surdas usam para ouvir e falar. A língua gestual portuguesa.
Em cima de um palco, no cantinho da nossa televisão, numa aula na escola, numa consulta médica ou a responder num tribunal.
A vida dos intérpretes de língua gestual portuguesa é uma correria entre todos os lugares do país onde alguém que não ouve, não aprendeu falar ou até a ler e escrever, precisa de entender o mundo.
Conheci a Sofia Fernandes em cima do palco no auditório do IPO do Porto. Ela traduzia o que os vários participantes do evento diziam.
A rapidez do gesto é fascinante. Não só das mãos.
Todo o corpo participa. Gestos nos dedos, braços, ombros e a cara.
Sim, as expressões faciais estão sempre a dizer qualquer coisa.
A dizer o espanto, a dizer a alegria, a sofrer a tristeza.
Naquele palco ouvi-a depois falar de viva voz.
Da maneira como ajuda a comunidade das pessoas surdas a comunicar. A ouvir, se é que posso usar esta palavra, e a dizer o que quer. E o que ouvi não podia ficar só ali. Tinha de o partilhar convosco.
Esta conversa é sobre comunicação. Todas as conversas do Pergunta Simples são sobre comunicação. Mas esta tem um nível de complexidade difícil de entender para quem ouve. Para os ouvintes regulares do ‘podcast’.
Mas neste caso o programa não tem só áudio, ou vídeo, com legendas. Neste caso este episódio está também traduzido em lingua gestual graças à generosidade da Sofia. Pode ser visto em www.perguntasimples.com e nos YouTube desta vida.
Portanto, não só veio contar tudo o que sabe, como, no fim ainda teve de trabalhar.
Eu disse generosidade? Acrescento uma palavra: torrencial.
E eu aprendi como se diz com um só gesto a mais bela palavra do mundo
O QUE APRENDI NESTE EPISÓDIO
A interpretação é muito mais do que traduzir palavras. Entendi que a língua gestual portuguesa não pode ser feita palavra por palavra porque é uma língua com gramática própria e ‘nuances’ específicas. O trabalho do intérprete é captar o sentido e adaptar o que está a ser dito, principalmente em temas complexos ou pouco familiares.
Adaptar-se ao momento é essencial. Percebi que, em interpretações ao vivo, como num telejornal, o intérprete precisa de uma grande agilidade para adaptar o contexto e corrigir interpretações, quando necessário. Sofia explicou que, ao não perceber uma palavra ou perder uma parte da conversa, procura “proteger-se” e transmitir algo literal até conseguir encaixar o contexto completo.
A carga emocional nas interpretações delicadas. Nas consultas médicas ou em audiências judiciais, o intérprete é obrigado a usar a primeira pessoa, dizendo “eu”. Esta proximidade com a situação pode ser emocionalmente exigente, especialmente ao lidar com histórias de dor ou sofrimento.
A acessibilidade continua a ser uma grande barreira. A falta de intérpretes e de recursos acessíveis é evidente, e Sofia sublinhou a dependência que muitas pessoas surdas têm de amigos e conhecidos para fazer coisas simples, como ir ao médico ou tratar de assuntos burocráticos.
Conhecer o contexto é chave. Quanto mais o intérprete entende o contexto, melhor consegue interpretar com fidelidade. Por exemplo, Sofia menciona como recorre a amigos surdos para confirmar se usa os gestos mais adequados, tornando a interpretação mais rica e natural.
O impacto emocional e cultural do seu trabalho. A experiência de Sofia a interpretar um hino no estádio do Dragão revelou como momentos de grande visibilidade têm um impacto emocional e fortalecem a cultura surda. Percebi que a presença de intérpretes em momentos públicos dá poder à comunidade e fortalece a sua identidade.
A língua gestual portuguesa é uma língua própria, não uma “linguagem”. Aprendi que há uma diferença entre língua e linguagem: enquanto a linguagem gestual é mais universal, a língua gestual portuguesa é uma língua completa, com gramática e evolução cultural.
Apoiar a comunidade surda vai além do trabalho. Sofia mostrou-me que ser intérprete não é só uma profissão, é também um compromisso com a comunidade surda. Ela ajuda os seus amigos surdos no dia a dia, seja numa urgência médica, seja numa situação burocrática. Esse apoio contínuo é essencial para a inclusão.
Ainda há resistências nos serviços públicos e escolas. Sofia mencionou que enfrenta resistência ao interpretar em hospitais e escolas, pois nem todos entendem o papel do intérprete como facilitador da comunicação e, muitas vezes, veem-no como uma “ameaça”.
Dedicação e formação contínua são indispensáveis. Percebi que ser um bom intérprete não se limita à habilidade técnica; é preciso ter empatia, ser dedicado e estar disposto a evoluir constantemente. A interpretação exige o domínio da cultura surda e o compromisso de servir como ponte de comunicação.
Essas aprendizagens mostram-me o valor da interpretação na comunicação acessível e como ela é fundamental para promover uma sociedade mais inclusiva e justa.
LER A TRANSCRIÇÃO DO EPISÓDIO
00:00:00 :00 – 00:00:11 :14
JORGE CORREIA
viva. Sofia Fernandes, intérprete de Língua Gestual Portuguesa Vejo te a fazer coisas como interpretação de hinos em jogos de futebol.
00:00:11 :16 – 00:00:40 :03
JORGE CORREIA
Vejo te também fazer coisas como os telejornais, como as notícias que nós costumamos ver. Como é que alguém vai passando o seu dia a saltar de tema para tema, de assunto para assunto e se consegue manter, no fundo, a traduzir esta realidade daqueles que conseguem ouvir. Para aqueles que não têm essa, essa faculdade, não têm essa capacidade.
00:00:40 :05 – 00:00:57 :21
SOFIA FERNANDES
Então, antes de mais, obrigada pelo convite. É um prazer estar aqui. Em relação a essa questão, no fundo, eu sempre soube que isso me ia acontecer na vida, porque quando era mais jovem, comecei a ter que pensar no que queria fazer. Sempre disse que era já uma profissão que não fosse sempre a fazer a mesma coisa.
00:00:58 :02 – 00:00:59 :17
JORGE CORREIA
Mas esta é sempre muito diferente.
00:00:59 :17 – 00:01:20 :13
SOFIA FERNANDES
E isto é realmente muito diferente. Como é que se faz isso? Faz com faz com paixão, com amor à camisola, a participar muito na comunidade para também termos o máximo do léxico e gestos possíveis para podermos corresponder às diferentes situações. Mas depois ela terá de acontecer e acontece de forma natural. Exato, não sei explicar.
00:01:20 :13 – 00:01:45 :06
JORGE CORREIA
Assim como olha, nós que quando, por exemplo, lemos um livro, acrescentamos sempre umas palavras às nossas, às nossas bibliotecas pessoais, palavras, contextos, perceção, aprendizagem de temas. É curioso que aquilo que tu me estás a dizer é que tu também no teu trabalho, ao acompanhar e ao fazer aquilo que é uma tradução simultânea, é disso que estamos a falar, certo?
00:01:45 :10 – 00:01:48 :12
JORGE CORREIA
É isso que alguém que diz qualquer coisa e tu está.
00:01:48 :12 – 00:01:50 :13
SOFIA FERNANDES
Logo uma interpretação daquilo que está a ser dito.
00:01:50 :19 – 00:02:08 :01
JORGE CORREIA
Tu pareces naquele quadradinho ali da televisão aqui em baixo, quando aparecem pessoas que estão a dizer coisas. Tenho sempre uma curiosidade de saber se aquilo que tu estás a fazer em termos de gestos é literal. Tu estás a fazer palavra por palavra, estás a fazer uma interpretação de sentido. Como é que isso funciona?
00:02:08 :04 – 00:02:36 :23
SOFIA FERNANDES
Então? Não dá para ser palavra por palavra, porque na realidade são duas línguas dispares. A língua gestual não nasceu da língua portuguesa. A língua gestual teve a ver com uma pessoa surda que era filha de um rei. Penso não falou Hierro que era Dom João Quarto e portanto ela teve uma aprendizagem de língua gestual da parte da Suécia também, se não estou em erro, isso é, se eu sei, tenho quase a certeza que esqueci de olhar o vocabulário E a partir daí, pronto, fomos.
00:02:37 :03 – 00:02:59 :15
SOFIA FERNANDES
Ainda há muita história da língua gestual aqui em Portugal. Mas isto para dizer que como uma não deriva da outra, não dá para ser palavra por palavra, portanto é mesmo uma interpretação que acontece. Claro que quanto mais fidedigna ao que está a ser dito, ideal quando não é possível acompanhar em termos, lá está, a contextuais, não é o que está a ser dito.
00:02:59 :20 – 00:03:14 :00
SOFIA FERNANDES
Vamos fazendo uma tradução mais literal, mais ok. Está a ser dito assim, deixa me dizer. Mesmo assim, quando começamos a perceber o tema já dá para fluir mais. Já dá para a língua gestual ser mais natural, mas até se tornar natural, temos que estar dentro do contexto.
00:03:14 :02 – 00:03:43 :08
JORGE CORREIA
Olha, quando estamos a falar de coisas comuns, como são as notícias ou quando tu conheces o contexto exacto em que estás a trabalhar, imagino que consigas preparar te de uma forma claro, mais fáceis. Como é que tu funciona quando te calha na rifa teres que traduzir um tema ou muito difícil, ou que tu não dominas, ou que no meio daquela conversa tu perdeste